Eduardo Lourenço
Sob a forma de cópia, possui o Acervo de Eduardo Lourenço a carta a Vergílio Ferreira (1916-1996) aqui apresentada. É apenas uma das 256 cartas que Eduardo Lourenço escreveu a Vergílio Ferreira entre 1955 e 1995, e que se encontram no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Portugal. Segundo nota autógrafa de Regina da Costa Kasprzykowski, viúva de Vergílio Ferreira, a «correspondência de Eduardo Lourenço, [pesa] 2400 Kg. ou cerca de duas centenas e meia de cartas».
Datada em Vence, a 4 de Setembro de 1987, inclui uma referência à polémica entre Eduardo Lourenço e o poeta Rui Knopfli (1932-1997), que pode ser lida no volume Destroços: O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios (Lisboa: Gradiva, 2004). Embora inicialmente escrito em francês (Nice, 3 de Outubro de 1967), o texto «Othelo ou a diferença como tragédia» só será publicado no n.º 246 do JL: Jornal de Letras Artes e Ideias (23 de Março de 1987), espoletando a troca de argumentos. Entre referências à actualidade política («o ressentimento do Dr. Zenha»), Rui Knopfli sugere que Eduardo Lourenço desconhece as fontes anglo-saxónicas que estudaram a obra de Shakespeare, considerando que o ensaio exemplifica uma «pecha ou lugar-comum de que Portugal é dependência cultural de França e arredores próximos».
Vence, 4 de Setembro de 1987

Meu Caro Vergílio

Acabo agora mesmo de receber o livro e parecerá indecente que um velho amigo e mais velho leitor comece este paleio sem reagir, como é curial à oferenda, mais que oferta, aqui, em cima da minha mesa. Já li as primeiras páginas, já verifiquei uma vez mais que envia os pais para um limbo de paz que parece uma sucursal do paraíso e que desta vez, como foi de outras, mas em conta final, a conversa vera com o Filho. Ou o não-Filho. Em suma, consigo. Como desde o início mas de outra maneira. Lembra-se de eu lhe ter escrito um dia que o ponto de fuga da sua ficção é tão admirável por pouca ficção ser, entre outras coisas, seria um dia a pura confissão sem máscara, o monólogo puro que no fundo tem sido sempre e que de resto seria o acompanhamento, não necessário, sem o qual «a ficção» não se digna aparecer? É já isso em inúmeras páginas de Conta-Corrente, é também isso no seu ensaísmo, o mais subjectivo da nossa fraca tradição dele, mas, paradoxalmente, é sob a máscara que a meditação de fundo (sem fim e até ao fim) atinge a sua sublimidade e esplendor. Como só vou no princípio o que direi aqui, com desvergonha de adivinho, vai sob caução. Não pensava – não pensarei, no fim? – que depois de Para Sempre a sua ficção pudesse ter continuação, não continuidade, que é só uma coisa que vem depois de outra. Mas creio que vou render-me à evidência. O essencial está dito – esteve sempre dito e nunca dito – mas abre-se Até ao Fim, começa-se a ler e o milagre acontece. Menos o da fábula que continua a polir um «osso» – e a metáfora é justa – que parecia inexcedível de brancura e de silêncio, a Morte, do que o da escrita, do «tom» onde tudo o que importa soa como a nossa memória beiroa no sino da nossa infância (tão comum foi, a alguns quilómetros o nosso mundo, pelo menos «fisicamente», humanamente). O Gide disse do Goethe, e creio que Kafka pensava o mesmo, que o cúmulo do estilo era a sua ausência. O que os dandys dizem do vestuário e da elegância nele. Nenhum dos seus livros abre com um começo tão serenamente translúcido. Sempre lhe serviu para se distinguir da sua geração mais ou menos ignara em Horácios e Virgílios a frequência dessa nudez clássica. Com o romantismo – e você é acaso o maior romântico dos nossos escritores, com o Pascoaes que o era também na escrita da alma, mesmo com tanta gravidade sarcástica voltada do avesso. Soberbo começo que me deixou em transe, como se fosse o primeiro livro seu ou aqueles que não nos consentem ler mais do que as primeiras linhas, como o de Descartes encontrado pelo Malebranche e lhe mudou a vida. A minha já não mudará – nunca houve, hélas, que mudar – mas prometo-me uma grande festa – um festim mesmo se é como o de D. João – para logo à noite, antes que a Annie mo roube e o leia primeiro, como já tem acontecido.
Não respondi logo à sua carta porque estava à espera dos livros. Mas também porque vim duma pouco justificável viagem ao Brasil, bastante cansado embora não mais do que já antes de partir. Cansaço físico, bruto. O outro liga-se com as minhas andanças (antes de partir para o Brasil) por médicos, com scanners (?) pelo meio, a ver se descobrem manchas na minha galáxia íntima. Primeiro descobriram (pâncreas), depois hesitaram na leitura, estou nestas águas, vagamente esperançoso que não seja «nada» e nalgum lado de mim desinteressado até da hipótese de que fosse «tudo». Nasci dividido e assim acabarei apesar dos esforços absurdos e pouco probantes para me unir senão a mim a qualquer coisa que tenha uma aparência de «sentido».
Quanto à não-polémica Knopfli que deve ter euforizado esse amigo de copos do Cardoso Pires, com a ida ao Brasil, a conselho dos raros amigos que se manifestaram – também servem para isso as «polémicas» – foi-me parecendo melhor ficar fiel à promessa que fizera de não responder1. Mas você que me conhece saberá o que me custa este silêncio quando a resposta pouco amena se arrasta aqui por cima da mesa. O Eugénio Lisboa, amigo e velho cúmplice de aventuras literárias moçambicanas do Knopfli, até acha que eu precisava da coroa de espinhos para ficar mais humano... Se calhar é verdade. Já foi com esta salvífica intenção que o Knopfli resolveu sacrificar-se por uma matilha que há muito não sabia como me remeter para a sombra onde eles julgam que eu não estou tão habituados à glória africana que agora lhes falta, estavam. Como diz a Dona Amália tudo isto é triste, tudo isto é fado, mas eu tenho mais que fazer do que servir de suporte publicitário ao Knopfli e de fazer vender mais números do J.L.
A Annie acabou a tradução francesa do Rei da Baviera e espero que desta vez saia aqui. Quanto à belga e ao Labirinto2 nem notícias. Caí (caímos) numa esparrela de pato bravo (belga ainda por cima) e agora não sei como resolver esta charada sem enigma.
Já não pergunto pelo estado do irmão da Regina por saber que não poderá ser bom e que ela terá que levar (e ele) essa cruz até ao fim. Acabo pelo título do seu romance, sem querer, mas não há outro acabar.
Saudades muitas para ambos. Um grande abraço de (pré) parabéns e com ele o do muito amigo

Eduardo


1 A propósito da polémica entre Eduardo Lourenço e Rui Knopfli cf. Destroços: O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios. Lisboa: Gradiva, 2004, pp. 175-201.
2 Le Labyrinthe de la Saudade – Psychanalyse Mythique du Destin Portugais (trad. Annie de Faria). Bruxelles: Ed. Sagres-Europa, 1988.







«Othelo ou a diferença como tragédia» (Destroços: O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios. Lisboa: Gradiva, 2004, pp. 175-182). Originalmente publicado no n.º 246 do JL: Jornal de Letras Artes e Ideias (23 de Março de 1987), o ensaio de Eduardo Lourenço suscitou um comentário polémico de Rui Knopfli, nas páginas do mesmo jornal.