Luciana Stegagno Picchio
(Alessandria, Piemonte, 1920-Roma, 2008)
Organizado por João Nuno Alçada, o volume Estudos Portugueses: Homenagem a Luciana Stegagno Picchio (Lisboa: Difel, 1991) contou com a colaboração de Eduardo Lourenço, autor do ensaio intitulado «Os Dois Cesários» (Vence, 26 de Outubro de 1986), publicado nas páginas 969 a 986. Luciana Stegagno Picchio foi professora universitária, filóloga especialista em Estudos Portugueses e Brasileiros, com particular atenção à literatura medieval e teatro portugueses. Com uma bibliografia com perto de 700 títulos, Stegagno Picchio contribuiu para divulgar a cultura e a literatura portuguesa em Itália. David Mourão Ferreira chamou-lhe «a maior lusitanista do mundo». Membro da Academia de Ciências de Lisboa (1975), Luciana Stegagno Picchio foi também galardoada com o Diploma de Mérito do Instituto Camões, com a Ordem de Santiago da Espada (1988) e com as condecorações brasileiras Cruzeiro do Sul e Ordem do Rio Branco. Em Portugal, recebeu dois Doutoramentos Honoris Causa. Um na Universidade de Lisboa (1990), outro na Universidade Nova de Lisboa (1998). Publicada anteriormente na revista Colóquio/Letras (Eduardo Lourenço, uma ideia do mundo, n.º 171, Maio 2009), a carta datada de Levanto, 15 de Agosto 1991, é uma das 49 cartas autógrafas de Luciana Stegagno Picchio, que cobrem um período que vai de 1974 a 1999, pertencentes ao Acervo de Eduardo Lourenço.
Villaggio Verticale
19015 Levanto

Levanto, 15 de Agosto 1991


Meu caro Eduardo:

Dedico o Verão à leitura dos ensaios contidos nos Estudos Portugueses e que vocês todos quiseram oferecer-me. Leio e agradeço. Há tanta coisa boa neste livro que talvez o meu nome fique só por ele. Livro de referência, além de que de amizade. Muito obrigado. E obrigado a ti por este belíssimo Cesário ou, melhor, por estes Dois Cesários que quase conseguiram aproximar-me a este «anjo da Modernidade» que até aqui eu tinha colocado num limbo de suaves provincianos, ao lado de João de Deus e não só dele, naturalmente. Sempre tive medo dos inocentes e só gostava dos falsos inocentes, como Caeiro, dos inocentes metafóricos que nunca guardam rebanhos e jogam ao «como» se os guardassem. Agora o teu Cesário revela-se duplo, um homem que como eu ama os ângulos agudos e o cheiro dos ácidos, antes de que o das rosas, sabe falar com os seus poemas ironicamente, metapoeticamente. Conseguiste extrair todo o bom de Cesário numa mini-antologia modernista, deixando no fundo de panelas todos os óbvios que eu, menos selectiva, duramente estrangeira, não conseguira separar. Agora gosto de tudo, das «lojas tépidas» e da «riqueza química no sangue». O crítico é efectivamente este alquimista que sabe, não digo transformar, mas extrair o ouro da areia. E tu és um grande crítico, Eduardo. Para Cesário seria talvez melhor que, de futuro, eu não procurasse mais vê-lo na íntegra. Assim é que é bom. Ainda obrigado e um abraço de Nino para ti e a Annie
Luciana