João José Cochofel
(Coimbra, 1919-1982)
Poeta, ensaísta, crítico literário e musical, João Cochofel deixou o nome ligado ao movimento neo-realista português. Nasceu em Coimbra e nesta cidade formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Membro fundador das revistas Altitude (1939) e Vértice (1942), fez parte da direcção da Gazeta Musical e de Todas as Artes. Ensaísta e crítico musical, dirigiu o Grande Dicionário de Literatura Portuguesa e Teoria Literária (1977), cuja publicação ficou incompleta. O seu espólio encontra-se no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional de Portugal. O Acervo de Eduardo Lourenço possui 15 cartas de João José Cochofel, escritas entre 1968 e 1974.
Coimbra, 28/XII/68

Meu caro Eduardo Lourenço:

Cai-me a cara com vergonha de ainda te não ter agradecido não só o espaço que me dedicaste, mas ainda a amiga oferta do teu estudo sobre o «Sentido e forma da poesia neo-realista» (porque não lhe chamaste antes qualquer coisa como «o neo-realismo coimbrão» ou «três poetas neo-realistas»? Hás-de pensar que começo pelas objecções. Mas verás que poucas mais terei a fazer-te).
Sim, não tenho desculpa para este silêncio. Mas a verdade é que contava estar contigo no Verão passado, para conversarmos largamente sobre a tua colaboração no Dicionário e sobre o teu livro. Entretanto o tempo foi passando (tu deves saber como o tempo passa sobre os nossos projectos mais caros) e vejo-me reduzido ao remédio de uma pobre carta, quando o calor da leitura já esfriou.
Nas suas linhas gerais, considero o teu trabalho a primeira tentativa para explorar em profundidade o ciclo poético do chamado primeiro neo-realismo, tentativa levada a cabo com inteligência e uma grande honestidade de propósitos e onde há verdadeiros achados que lhe iluminam particularidades até agora ignoradas ou mal pressentidas. Ao que se junta um conhecimento da matéria «por dentro», que por várias vezes acordou em mim, muito viva, a nostalgia do «nosso tempo». Isto apesar de um evidente preconceito anti-neo-realista, a que eu, claro está, não posso aderir, por mais que reconheça hoje em dia todas as limitações e todos os «erros» do movimento, e que dava pano para mangas de uma boa discussão (por exemplo, sobre este ponto: não haverá um ideário «por trás» de toda a obra de arte? Porque há-de só o neo-realismo ser acusado desse pecadilho?
Além disso, (terceira objecção) notei aqui e ali uma certa precipitação de leitura. Por exemplo, no meu caso, em que me é mais fácil justificar-me: na poesia que encerra os Quatro Andamentos, não há ceifeira nenhuma nem grito nenhum. Há, sim, um grilo (bichinho cantador), e que melhor alimento para um triste grilo, do que uma boa folha de alface, com que engane a clausura? Alface para o grito da ceifeira, também a mim me pareceria «imagem de contestável gosto»; mas para um grilo cativo, afigura-se-me certo.
Quarta e última objecção: as gralhas, as nuvens de gralhas que se abatem sobre o texto a ponto de o desfigurar ou, em certos passos, o tornar mesmo incompreensível, com palavras suprimidas ou trocadas.
Aqui tens, pois, um resumo do que penso do teu livro. Espero que um dia se proporcione o ensejo de sobre ele trocarmos impressões mais detidamente.
Agora sobre a tua colaboração no Dicionário: obrigado por teres aceitado as rubricas que te propus, e guardar-te-ei também, de acordo com o teu desejo, a entrada respeitante a LITERATURA. Vou muito em breve distribuir pelos colaboradores a letra A1, e então voltarei a bater-te à porta.
Claro que não esqueci o Saraiva2 nem o Coimbra Martins, que já aceitaram. Consegui, aliás, uma lista de colaboradores brilhante. Não a tenho à mão aqui em Coimbra, mas em breve a verás nos folhetos de propaganda que os editores vão distribuir. E, a propósito, manda-me, para esse efeito, e com a maior urgência, uma relação dos teus títulos académicos.
Um abraço amigo e reconhecido do
João José Cochofel

P.S. – Em Agosto não sabia onde te encontrar. Depois vim a saber que estiveste em Coimbra quando eu estava para o Algarve, e, mais tarde, quando eu já em encontrava no Senhor da Serra3. Porque não telefonaste?

1  João José Cochofel propôs a Eduardo Lourenço os seguintes verbetes: apolíneo, artificialismo e axiologia.
2  António José Saraiva (1917-1993).
3 Povoação do concelho de Miranda do Corvo onde João José Cochofel possuía uma casa.