Maria Lúcia Dal Farra
(Botucatu, São Paulo, 1944)
São Paulo, 16 de maio de 1979.

Caro Eduardo:

quase dois meses depois da sua carta, tão amável e inteligente, é que posso sentar-me um pouco despreocupadamente a fim de agradecer-lhe a leitura e a delicadeza. Monto o agradecimento através destes dois dados porque não os desvencilho, visto que você foi complacente para com o meu livro e para comigo. Mas não importa: fiquei contentíssima.
É inteiramente acertado o reparo de substituição da “escritura” pela “escrita”. Se houver uma outra edição, não só reescreverei a segunda parte (dedicada a Vergílio) como efetuarei correções desse tipo. Interessante que a sua observação é exatamente a que Antonio Candido me havia feito, dando as mesmas razões de ordem bíblica e legista.
Mas já extrapolei. Eu dizia inicialmente das desculpas por ter-me demorado a lhe agradecer, e era essa a minha primeira intenção. Quando recebi a sua carta eu me encontrava num momento extremamente difícil, ultimando a escrita da minha tese de doutoramento sobre Herberto Helder, em perfeito desespero, devido ao prazo que me restava para a apresentação. Imagine que era o fruto de uma pesquisa de quase seis anos divididos entre as aulas e outros compromissos, e eis que a data da entrega se aproximava sem que eu tivesse terminado pelo menos a primeira versão. Daí para diante o tempo passou fulminante até que agora, mais moroso, ele permite-me uma pausa para escrever-lhe enquanto espero o dia da defesa. Quanto ao fato de eu estar a lhe escrever à máquina, fato que requer desculpas, devo me referir ao perfeito hieróglifo que a minha letra é e que você teve ocasião de presenciar pela pequena amostra anterior contida no remetente do envelope que lhe enviei. Portanto, é uma lição que já tirei há tempos para mim, a de que se quero ser compreendida devo comunicar epistolarmente à máquina.
Realmente o seu ensaio sobre o Neo-Realismo, aquele que me referiu, não é conhecido por nós. Andei mesmo quebrando a cabeça a ver se alguém ou alguma biblioteca tinha o exemplar d’O Tempo e o Modo onde há o seu estudo “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos” (que vi citado por Fernando Guimarães na Nova), mas inutilmente. Parece-me, pelas referências de Guimarães, que ele seria imprescindível para entender melhor o alcance do modernismo junto à produção literária das décadas de 50 e 60 e, portanto, a Herberto Helder. Entretanto não me foi possível lê-los desde que nem a Biblioteca de Estudos Portugueses da USP o tinha. Arranjei-me somente com alguns ensaios do seu Tempo e Poesia, com aqueles que mais se aproximam deste tipo de preocupação. Gosto imensamente de suas coisas, Eduardo Lourenço, considero-as excelentes e extremamente instigadoras. O seu ensaio sobre a Presença é perfeito e eu trabalhei com ele num anexo, qua afinal não insertei na tese, onde procurava observar o trajeto da legibilidade e da ilegibilidade desde o Orpheu até os últimos movimentos poéticos, até alcançar Helder.
O que vou fazer agora é enviar-lhe, então, um exemplar dessa tese (A Alquimia da Linguagem: Leitura da Cosmogonia Poética de Herberto Helder) que somente lhe chegará às mãos dentro de uns três meses. Me explico: saiu-me uma coisa imensa (370 páginas) que, em virtude das exigências de padronização das teses, pesa fisicamente muito. Só posso lhe enviar por via marítima, o que explica por antecipação a demora de recebimento. Gostaria muito, se lhe fosse possível, que a lesse e que me desse o seu parecer, pois prezo muito a sua leitura e suas observações. Sabe que devo ir para França logo depois da defesa (coisa de uns dois meses) para permanecer em Paris durante dois anos, a fim de lá realizar algumas pesquisas sobre um assunto que terei oportunidade de discutir consigo. Logo que lá chegar eu lhe escreverei indicando meu novo endereço e é possível que o procure.
Se entendi bem a sua letra, imagino que receberia junto com a sua carta o seu livro. Porém isso não se deu: deve ter sido um engano meu. Mais uma vez quero lhe agradecer a leitura e a gentileza. Se você quiser algo daqui avise-me antes que eu viaje para que possa ter oportunidade de lhe remeter o que desejou. Estou às suas ordens. Com grande abraço amigo da Maria Lúcia.
Maria Lúcia Dal Farra é uma poeta e professora brasileira. Em 2012, recebeu o Prémio Jabuti graças à obra Alumbramentos. Dal Farra ensinou Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo onde, em 1973, obteve o grau de mestre com a tese O Discurso à Procura do Discurso: Estudo dos Romances de Primeira Pessoa de Vergílio Ferreira. A tese de doutoramento, sobre a poética de Herberto Helder, foi publicada em 1986 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda com o título A Alquimia da Linguagem: Leitura da Cosmogonia Poética de Herberto Helder. Ensinou, igualmente, na Universidade Federal de Sergipe e tem ampla colaboração na revista Colóquio/Letras (Fundação Calouste Gulbenkian). Conhecida pelos seus estudos sobre a escritora Florbela Espanca, Dal Farra publicou em 1994, também na INCM, Trocando Olhares. Com estudo introdutório e notas, Trocando Olhares é uma obra fundamental para conhecer a oficina poética de Florbela Espanca.