"A religio, segundo Cícero, denota a dependência, o laço que ata o homem a Deus. Mas, de algum modo, esse laço não ata menos Deus ao homem. O cristianismo está aquém ou além desta mútua interdependência" — Eduardo LourençoNa Europa, a religião, não só no seu campo próprio, o espiritual, mas nas suas relações inextricáveis com o poder, em todas as ordens, desde a política, a jurídica ou da prática social, foi um objecto de discussão, de conflito, permanentes. Se num dado momento, o combate pareceu suspenso, foi apenas porque a religião se pluralizou, com a Reforma. Com essa pluralização, de imprevistos ou previsíveis efeitos na política, na cultura, na sensibilidade, surgem duas Europas criando uma nova dimensão religiosa à já existente depois da separação de Roma e de Bizâncio. Em termos históricos, este momento é o da pré-história da laicidade. Pois, curiosamente, não se pode dizer que esta pluralidade de estatutos religiosos na cristandade, embora favorecendo a tolerância, equivalesse ao triunfo da laicidade. Com a separação entre católicos e protestantes, a religião passa a confundir-se com a religião de Estado, antecipando o tempo em que o Estado moderno se arrogue um estatuto religioso. Não é exactamente este o estatuto propício à laicidade. Mas menos o era dentro da Europa católica, abalada mas não liquidada pela Reforma. Neste espaço, a luta pela laicidade será, naturalmente, mais áspera. A liberdade de crença, no seu sentido mais lato, sempre apareceu à Igreja Católica como a antecâmara da descrença. E de facto o é, pois a laicidade em outra coisa não consiste senão na liberdade de crer nisto ou naquilo ou de todo não crer. Por isso, e em termos culturais, a questão da laicidade não tem o mesmo perfil nos países de tradição protestante e nos países de tradição católica. Sem contradição alguma, o conceito de laicidade só tem ecos polémicos ou gera ainda conflitos nas áreas de tradição católica, onde o termo laico tem intenção diversa da que tem nos países protestantes. Não se pode dizer que a Alemanha ou até a Inglaterra sejam culturas “laicas”. A liberdade religiosa (como nos Estados Unidos) não é uma entre outras formas de liberdade, mas o fundamento de todas as outras. Pelo contrário, na Itália, a ideia de laicidade contém implícita quer no plano religioso, quer no político, a oposição ou o distanciamento em relação ao ideário católico. Por isso, a passagem a uma cultura laica, não só na Itália, como nos outros países de tradição católica (Espanha, Portugal), será não só lenta mas complexa. Sob muitos aspectos, ela continua sob os nossos olhos, como o mostram não só as querelas escolares ou os problemas de sociedade que continuam a ser tratados em função de opções religiosas ou anti-religiosas, como o da interrupção legal da gravidez e outros.
"O actual panorama de pluralismo religioso ou de potencial ecumenismo só foi e é possível pelo facto de a cultura europeia se ter tornado, ao longo de um processo milenário, uma cultura tendencialmente laica" — Eduardo LourençoA dupla exclusão que o antagonismo entre a cultura fundamentalista ou de hegemonia ortodoxa e a cultura de inspiração laica configuram, se tem algum sentido numa perspectiva meramente culturalista de perfil ideológico-político, a que certas consequências mediáticas conferem, a justo título, grande relevo – a condenação de Salman Rushdie, por exemplo – é, em si mesma, irrelevante e ilusória. Só na perspectiva de uma cultura realmente tendencialmente laica, a condenação “moral” de Rushdie – não a da barbárie contida na “pena de morte” ritual – é um autêntico escândalo além de acto incompreensível. Mais incompreensível do que realmente escandaloso, na medida em que “o religioso”, do ponto de vista laico, é uma mera alucinação ou, pelo menos, uma esfera que, por definição, está fora de discussão, por defeito ou por excesso. Numa cultura idealmente laica, como desde há mais de dois séculos uma parte da cultura europeia a si mesma se representa, nenhuma consideração de ordem religiosa provoca qualquer efeito de sentido. Pelo menos, na ordem do discurso. Efectivo ou hipotético, o espaço do religioso é o da sua neutralização.
"A laicidade não é inocente se não comporta distância em relação à tentação de se fechar sobre si como “discurso de verdade”. Ela vive do que nega ou do que a nega. Este estatuto oscilante é o seu ponto de honra" — Eduardo LourençoE se a perspectiva laica, quer na ordem da genealogia, quer na do conceito, não fosse inteligível a partir de si mesma, mas só da religião que põe entre parêntesis, primeira na ordem do tempo e da manifestação ontológica? Nem relativizável, nem redutível, a religião enquanto religiosidade vivida, manifesta, não tem exterior, a não ser sob a forma de negação, quer dizer, supondo que é totalmente falha de sentido. Não há, nesta matéria, meio termo. Como dizia ironicamente Kierkegaard, a propósito do “ser cristão”, não se pode ser “um pouco” ou “pouco mais ou menos” cristão. O religioso define um campo de auto-referência absoluto. Como a laicidade releva de uma visão intrinsecamente relativista nesta matéria, a questão põe-se de saber se a querela que parece opor laicidade-religião – mesmo apenas no círculo da cultura do Ocidente – tem realmente sentido fora dos avatares intelectuais e ideológicos de certas culturas e, eminentemente, da cultura francesa. Ou então se só adquire sentido com a condição de ser pensada e integrada em qualquer discurso previamente delimitado pela ideia de que a laicidade é uma atitude tão transparente e indiscutível que não precisa de ser interpelada. O que se parece um pouco com o círculo vicioso. Nesse caso, só como conceito dogmático ou dogmaticamente assumido, essa atitude que, segundo os tempos e o contexto, exige que a pensemos como associada à liberdade de consciência, à liberdade de pensamento, à tolerância, como condição ou expressão dela, a laicidade poderia ser tematizada. Em família, por assim dizer, e polemicamente. Na aparência, também sem que a pretensão de ser a expressão histórica e cultural da liberdade de crer ou de não crer importe em especial à ideia que nós fazemos da cultura europeia e do papel que atribuímos quer no passado, quer no presente ou lhe reservamos para o futuro.