O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga, 1955 Coimbra, Coimbra Editora
“17 de Setembro de 48

Espero na ante-sala insignificativa do consultório de M[iguel] T[orga]. Espero coisa alguma que não vim cá fazer nada senão auscultar uma solidão idêntica à minha. Ou por outra idêntica não que jamais haverá em mim uma tão obstinada certeza dum destino poético como em M[iguel] T[orga]. Toda a poesia que descubro em mim ou na vida seca da minha alma ácida como a dialéctica com que enveneno tudo. E no entanto há sempre em mim uma super-abundância de sentimento religioso que derramo e[m] todos os momentos sobre os objectos profanos. Se essa é a disposição fundamental dos místicos eu sou irmão deles. Vim ao consultório de M[iguel] T[orga] falar com ele, ainda não sei sobre quê, mas sei que é para fugir ao anedotário ignóbil dos amigos que encontro, ao seu cansaço, à sua podridão interior, à sua secura, à sua resignação ao inferior, ao diário, às pantufas, ao café na Central, à crítica desapiedada, à inacção, ao vício. E sobretudo ao silêncio que caiu na terra portuguesa, ao silêncio mortal duma cultura tumbal que projecta sobre o nosso viver miserável, sobre as melhores das nossas esperanças um luar de tédio envenenado. Numa sala de semi-vivos cada um sabe já que está morto. Livros de autores portugueses não se publicam, as revistas são ilegíveis, tudo tem uma tão certa certeza da morte que é preciso crer em Deus para ter força para acreditar que algum dia isto se transforme”

Ms. inédito em pequeno bloco de notas pessoais de Eduardo Lourenço.