Heidelberg, 1953
biografia
1953-54 Como Leitor do Governo Português, na Universidade de Hamburgo e Heidelberg, lecciona Língua e Cultura Portuguesas
1955 Heidelberg. A la pension Sonnenbühl où logeait Edouard qui s'ingéniait à cuire de la mourue dans sa chambre – “matar saudades” – les autres pensionnaires n'appréciaient pas l'odeur (Annie de Faria)
[Heildelberg] 1955
Nasci num tríplice túmulo e seria necessário a Deus um esforço três vezes maior do que o que lhe custou Lázaro para me chamar à luz: Portugal é um túmulo na Europa e a Europa um túmulo mais largo no túmulo do mundo. A nossa voz foi sempre um gemido à beira do mar mas ouvia-se enquanto a Europa era o ouvido da história humana. Mas a Europa é um velho perdido na memória farta da sua imaginação juvenil. Um mundo existe que não é a Europa e esse mundo é imenso e é o futuro.
Heidelberg, 19 Maio 55
Os meus grandes amores da pintura são Boticelli e Rembrandt. O primeiro me deu aquela espécie de eternidade sonhada que todos levamos dentro. Essa eternidade tem a face divina de uma Primavera sem fim, de uma Natureza promovida à sua lei sem tempo. Essa pintura é a negação mais vibrante e extática da Morte que eu conheço, um mundo anterior à Queda com que sonho a tantas horas do dia.
Rembrandt, ao contrário, é o pintor do tempo, o misterioso espião do estremecimento contínuo, do esfarelamento interior de todos os frutos da Criação a começar por si. Os seus auto-retratos são feitos de uma poesia luminosa mas o seu brilho é trémulo e ardente como o da vela e das lágrimas.
E todavia eu os reconcilio no meu coração, como se um fosse o negativo do outro. Aquela Primavera, aquela linha doente de ternura tão externa aos corpos que recria, são de uma melancolia lancinante, imagem luminosa e inacessível do sonho. Aquela Primavera tem uma face mortal: é a nossa face de ausentes dessa mesma beleza. Ao contrário o rio mortal da pintura de Rembrandt, a cintilação passageira do seu mundo recriam do interior pelo abso[lu]to da sua verdade, o milagre de uma eternidade. Todas as coisas são mortais mas merecem a glória luminosa da sua morte, mas quando as revemos nos espelhos da morte devolvem para nós uma cintilação imortal.
Heidelberg, 3-VI-55
S[anto] Agostinho diz que ser misericordioso é “dar o seu coração aos miseráveis” (miseris cor dare). Etimologia estranha, mas mais estranha para mim essa doutrina. Verdadeira, se miseráveis são todos os homens com a sua miséria ou mesmo a particular miséria de homens particulares. Mas impossível de aceitar se miseráveis são uma categoria de homens, uma espécie de classe social como eles eram no tempo de S[anto] Agostinho, como eles o são ainda no nosso, na realidade, mas mais ainda na consciência bem pensante que, ao dizer “miseráveis”, se distingue do próximo. A misericórdia é um sentimento que o homem não pode inspirar nem conceder ao homem. A misericórdia supõe Deus e a nossa misericórdia diante dele. É Ele, e não nós, quem pode dar o seu coração aos “miseráveis”.
3 páginas inéditas do Diário.
“Gostei muito de estar na Alemanha. Sobretudo em Heidelberg. Mais tarde arrependi-me de não ter aí ficado, porque naquela altura ainda estava implicado num projecto vago de fazer uma tese de filosofia, e aquele era o sítio adequado para isso. Gostei muito da atmosfera das universidades alemãs, muito diferente da atmosfera administrativa francesa, e onde os estrangeiros facilmente se podiam enquadrar, enquanto que em França era muito difícil.”
In Expresso, 23/9/1995 cit. in Tempos de Eduardo Lourenço - Fotobiografia, coordenação de Maria Manuela Cruzeiro e Maria Manuel Baptista, 2003 Porto, Campo das Letras, p.102.
Tétisee - 11 Juillet 1955 (Annie de Faria)