Brasil, 1958

biografia

1958 A Maio deste ano parte para o Brasil onde, por um ano e como professor convidado da Universidade da Baía, rege a cadeira de Filosofia
Rocha de Conde de Óbidos. Partida do paquete Vera Cruz no qual embarquei com destino à Baía (Eduardo Lourenço)

RML - Fale-nos de como via o Brasil antes de vir para cá, das suas impressões ao chegar à Bahia, em 58, e sobre a importância desta estadia.
EL - Como muitos portugueses, que em princípio não estavam vocacionados para uma emigração possível, antes de ser convidado para dar aulas na Bahia, no ano de 1858, eu tinha as ideias gerais que uma pessoa pouco cultivada pode ter acerca do Brasil. De qualquer modo, eram de ordem puramente ideal, apesar de eu ter tido alguém na minha família que emigrou para aqui (um tio do meu pai) […]


Quando vim para o Brasil a cultura era apenas livresca, isto é, feita através de leituras e como toda a minha geração – e já vinha um pouco da geração anterior – estávamos a par do que naquela altura era novidade: o impacto da cultura brasileira. Da literatura brasileira, mais que da cultura, explico melhor: pertenço a uma geração para a qual Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel Queiroz eram presenças muito vivas no contexto cultural português […]
A minha estadia no Brasil foi curta, apenas de um ano. Nós nunca sabemos muito sobre as experiências que vivemos, qual foi o seu real impacto, porque muitas vezes só mais tarde é que se toma conhecimento disso. De qualquer modo foi um impacto curioso porque, como experiência, não foi uma que terminasse muito bem… aquela ideia de ficar no Brasil. A Annie tinha obtido uma licença e se ao fim de um ano não encontrássemos aqui um futuro… portanto regressámos a França. […]

1959 Teresópolis. Meditação do "ensaísta" que escrevia nesta altura para o Portugal Democrático com o pseudónimo de "Lazarillo". Para escapar ao calor tórrido do Carnaval no Rio, Casais Monteiro aconselhou-nos a ir para Teresópolis, a 800 m de altitude: Uma semana de felicidade! (Annie de Faria)

Curiosamente estamos nos anos 58-59 e esse é um momento em que no mundo, em todos os continentes, se verificava o fim das descolonizações. E evidentemente percebi que Portugal estava metido numa encruzilhada por estar à beira de um precipício num ponto de vista da perda dos interesses coloniais, uma vez que Angola e Moçambique caminhavam para uma emancipação inevitável. Mas em Portugal ninguém queria realmente saber disso. Foi aqui no Brasil que, paradoxalmente, comecei a interessar-me por este tema do império, da colonização, e no fundo foi aqui que nasceu a ideia de que não se podia ter uma leitura da história portuguesa, da cultura portuguesa, sem conhecer esta outra parte do que tinha sido o império português. Em última análise, portanto, todo o arrière plan do Labirinto da Saudade tem a ver com a minha estadia na Bahia […]

Bahia: uma tarde com Vitorino Nemésio, o senhor Fonseca, natural da ilha Terceira, e a sua família da qual ficámos amigos (Annie de Faria)

De resto nesta altura já conhecia algumas das pessoas que fizeram parte do que eu chamo a diáspora da inteligência portuguesa do séc. XX, sobretudo dos meados do séc. XX. O Casais Monteiro – que eu conheci, realmente, em Portugal – conheci-o melhor na Bahia, o Agostinho da Silva, o Eudoro de Sousa mas estes eu tinha conhecido em Santa Catarina, onde tinha feito uma conferência. E depois ocorreu um acontecimento interessante, no ano em que nós partimos do Brasil, em 1959, que foi o IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, que concentrou na Bahia muita gente […]
RML - Como foi a sua experiência de leccionar filosofia em Salvador?
EL - Foi uma experiência muito curiosa, porque naquela altura a Universidade da Bahia estava a nascer. O Reitor Edgar dos Santos era um homem muito poderoso no Brasil, tinha sido Ministro da Educação, um grande empreendedor, fundou a Universidade da Bahia […]
RML - E o senhor se lembra dos temas que tratou?
El - Aquilo era uma coisa perfeitamente desfasada em relação à preparação que eu imaginava terem tido os alunos, ou que eu verifiquei depois que tinham tido. Salvo um rapaz, José Xavier que hoje já deve estar aposentado, mas que até há bem pouco tempo era professor ainda em Fortaleza. E este rapaz tinha grande educação, tinha trabalhado. E foi ele que me ofereceu a edição Aguilar da Obra Poética do Fernando Pessoa – que também deve ter tido alguma influência – de uma forma muito simpática, no fim, quando nos fomos embora. Este rapaz, depois ficou muito sob a influência de Agostinho da Silva. […]

Festa do Senhor do Bonfim (Eduardo Lourenço)

RML - E quem mais recorda?
EL - Socialmente conheci, enfim na Bahia o Jorge Amado que na minha juventude fora uma referência, um ícone […] E conheci ali um grupo de jovens intelectuais da Bahia. Um deles, mais tarde, formou-se em Antropologia e há na Bahia um Instituto com o seu nome, era o Vivaldo Costa Lima. Dava-se muito bem com essa cultura afro-brasileira e acabou, pelo menos, por ir para o Senegal. Também estava lá nesta altura – mas eu conheci-o pouco – o famoso fotógrafo Pierre Verger, que era mais velho. Na Bahia, que nesses anos era ainda um meio pequeno, a cidade devia ter cerca de 500 mil habitantes, conheci ainda outros intelectuais. E apareceu um jornal novo para o qual eu fui convidado a colaborar, por um menino chamado Glauber Rocha. Desse modo nos conhecemos e, com outros mais, ele veio a algumas das minhas aulas.[…] Assistimos ao casamento dele, casou com a Ignez que era uma bonita menina lá do sítio. E o almoço do casamento foi assim, como dizer? Delicioso… Mais tarde reencontrei-o em Cannes muito mudado.
Quase nem o reconheci. Percebi que havia ali um problema que eu desconhecia […]

1959. Florianópolis. Com Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa numa churrascada (Eduardo Lourenço)

RML - Ele foi às suas aulas e levou um grupo….De que tratava em suas aulas?
EL - Eu tratava entre outras coisas de Fenomenologia. A de Hegel… Só quem conhece o Brasil pode apreciar o que isto tem de “barroco” no sentido mais forte do termo. A Bahia dessa época não era precisamente a cosmopolita São Paulo. Contudo a Bahia já tinha nessa altura essas coisas que só acontecem no Brasil. Por exemplo: lá estava o maestro Koellreutter que iniciara essa capital do Barroco brasileiro e nosso na música mais vanguardista. Imagine-se o que era um concerto de Schönberg ou Alban Berg na Reitoria da Bahia para umas vinte pessoas. Era o mesmo que “ensinar” Hegel…[…]
No teatro era um outro, Martim Gonçalves”.

Com Agostinho da Silva em amena conversa numa praia bahiana (Eduardo Lourenço)

In “A Miragem Brasileira” entrevista por Rui Moreira Leite, cf. Colóquio/Letras “Eduardo Lourenço - uma ideia do mundo”, nº171, Maio/Agosto 2009, pp.296 e sgs.