Bordeus, 1948

biografia

1949 Com uma bolsa de Estágio da Fundação Fullbright e a convite do Reitor da Faculdade de Letras da Universidade de Bordéus, parte para França (Novembro 1949-Junho 1950) a fim de colaborar no “Corpus des Philosophes Français” na reedição de parte da obra de Malebranche relativa às polémicas com Arnauld.
Conhece Annie Salomon, então estudante no Instituto Hispânico da mesma Universidade.

1953 Estadia de dois meses (Janeiro-Fevereiro 1953) em Paris, com uma bolsa do Instituto de Alta Cultura, a fim de prosseguir a investigação sobre Malebranche

Cópia do convite feito pelo Decano da Universidade de Bordéus
1949 Bordéus, moi et Eduardo 'quase envergonhado' (Annie de Faria)
Fenomenologia e Dialéctica
Hegel tinha pressa. Todos os professores de Filosofia têm pressa…
Estação de caminho de ferro de Vilar Formoso

Maio de [1949]
Salamanca - 10 horas da noite
Que estranho jogo o nosso nestas cinco horas, o combóio arrastando-me na noite para um futuro improvável de pintor e eu caminhando em sentido inverso para um passado de adolescente que, subitamente, morreu entre as minhas mãos […] Sou estrangeiro apenas há poucas horas. E tanto bastou para encontrar a primeira palavra decisiva do meu destino. Estrangeiro. Ausente. Sózinho, entregue ao meu passado e à clarividência desta primeira noite sem ninguém conhecido à minha volta, descobri que nunca fui outra coisa desde a minha infância […]

Burgos – 2 horas da noite
A partir de Salamanca o rumor das conversas desapareceu lentamente tragado pela marcha obstinada através desta Espanha invisível […] Há uma hora que o silêncio é total. Uma ou outra silhueta verde, armada, passa um instante sob a lâmpada em frente das portas. É o único símbolo de uma vigilância sobre o próprio silêncio. A esta hora da noite seria impossível dizer que atravessamos uma terra de angústia. É sobre a minha memória recente, sob invisíveis rostos devastados que esta multidão adormecida está passando […] Durante três anos li crónicas sobre esta guerra. Crónicas de estrangeiros. Crónicas estrangeiras. Não compreendiam. É preciso estar enraízado na aridez desta terra que prolonga a minha para compreender. Quem não tem no sangue esta secura mortal, este combate desesperado que é já a própria terra, nunca compreenderá. Terra onde os melhores combaterão até à morte com os melhores. Terra onde os homens violentos terão um amor incompreensível por outros igualmente violentos que detestam […] Amam o granito. Morrem sobre o granito. E quem não é capaz de entender isto passa ao lado de Espanha.

“Diário” in “Dispersos e inéditos de Eduardo Lourenço” Colóquio/Letras, n.º 171, Maio/Agosto 2009, Fundação Gulbenkian, pp. 27-29.

Permis de Séjour
LMQ - Como é que foi mudar-se de Portugal para França, naquela época?
EL - Imagine o entusiasmo e o espanto de chegar a Bordéus (em 1949) e, na rua principal, ver uma grande faixa de propaganda do Partido Comunista Francês. Veja o que é sair do país de Salazar, atravessar o de Franco, que ainda era bem pior, e chegar a um sítio onde aquilo era uma coisa normal. Naquele momento, a França era o país da liberdade. Eu, que aqui cortara com os meus amigos comunistas – enfim, deixei de os ver mas nunca cortei com eles: o Joaquim Namorado chamava-me “reaça” mas sempre com um grande sorriso –, fui-me dar lá fora com muita gente do partido. Mas não era o mesmo PC, era um PC que culturalmente estava sob o fogo do olhar dos outros e que era o actor e o objecto de uma discussão que durou anos. Quando cheguei a França, o PCF era dominante no plano cultural. Mesmo o Sartre, embora tenha travado a sua guerra, sentia-se muito fascinado. Era o espírito da época. Eu sempre estive interessado nessas discussões, mas as minhas certezas em relação ao que não podia admitir nunca variaram. É claro que havia a esperança de que as coisas melhorassem. A URSS podia ter seguido outro caminho, as coisas podiam ter acontecido doutra maneira […] Formei-me a sério nessas preocupações de tipo político e ideológico em França, porque a discussão era contínua. Era impossível escapar. E tínhamos a convicção de que estávamos a discutir o futuro do mundo, até pelo papel cultural da França, que ainda era muito importante. Estou mesmo convencido de que uma parte daqueles desvios, daquelas estranhezas da União Soviética, não teriam sido possíveis sem a conivência da cultura francesa. […] Eu participava nesses debates como observador, e estar lá não era o mesmo que estar em Portugal. A cultura de referência marxista era hegemónica nas universidades francesas. Isto terminou em Maio de 1968, que, na aparência, foi contra o gaullismo, mas na verdade era um outro marxismo, uma outra esquerda, que vinha combater o PCF.”

In Luís Miguel Queirós “Retrato de um pensador errante” in Pública, 13/5/2007, pp.46-7.