Montpellier, 1955

biografia

1955-58 Como leitor do Governo Português, na Faculdade de Letras da Universidade de Montpellier, lecciona Língua e Literatura Portuguesas

“6 Fev[ereiro] 56

Distraído, em certos momentos a felicidade de um recanto tranquilo, pouco mais que pedra batida por um sol de inverno, subtrai-me à preocupação e à melancolia. Sobre o cimo de um instante a alma repousa. Mas no dar-se conta duma felicidade, ao dizer-lhe: “para um momento doce instante, os olhos são já olhos de todas as ausências, aquelas pedras e aquele sol a noite interna dos meus mortos e a minha felicidade de há uns momentos [é] um navio de papel encharcado pela dor do mundo. Todas as alegrias são da imaginação. Todas as tristezas são da memória”.

4 de Maio 56

Gerações e gerações de homens passam e a terra ondula como uma mulher sempre jovem, o dorso dos seus mares e os dedos das suas árvores. Este vento invisível e doce do começo de verão converte em seres humano as árvores do jardim. Uma grande e anónima felicidade banha hoje este jardim ainda ontem imerso no sortilégio sonâmbulo do inverno. E esta anónima felicidade é a minha, é a da humanidade de sempre amiga de si mesma e esquecida da sua morte em cada primavera”.
Prédio no qual se situava o apartamento que foi a nossa primeira casa (Annie de Faria)

“Mont[pellier] 5 de Maio 56

Há uma raça de garotos que força alguma pode conservar em casa. A sua casa é sempre “noutro lado”. Eu fui desses garotos que com ordem, mas sobretudo sem ela, se escapam para a rua, vasto mar das suas odisseias. Mesmo quando a rua não é senão a casa dos outros. Pois o que esses garotos buscam não é só pôr-se ao abrigo dos deuses todos poderosos das famílias. Mas entre os que fogem há duas raças ainda: os que buscam cantos secretos, lugares misteriosos onde enfim eles são o que são; e os que fogem para cair no reino dos outros. Os amantes da natureza e os amigos dos homens. O meu paraíso foram sempre os outros. Mas eles me devolviam a minha solidão como a natureza. Não fui copo de todas as águas, nem sequer das que cabiam no copo que era: fui água de todos os copos. Excepto dos que me ofereceram”.

Três páginas inéditas do Diário
Édouard, Françoise Batsch et Pierre Aubenque chez nous (Annie de Faria)

1957 Montpellier. Édouard, moi et mon frère Noël (Annie de Faria)
Un certain sourire d'un certain quadragénaire! Afectueusement aux "moins de quarante ans". Noël (Noël Salomon)
1956, Montpellier – Grupo dos meus alunos, cada um deles assinou a fotografia no verso (Eduardo Lourenço)
"A Eduardo de Faria
afect[uosamente]
Lovaina 28/VI/949
Joaquim de Carvalho"

“Heidegger gostava muito da obra de Cézanne, da Provença, de um modo geral do sul da França que havia visitado, pelo primeira vez em 1955, a fim de participar nas reuniões de Cerisy-la-Salle e é neste ano que conhece Georges Braque e René Char de quem se torna amigo. Nas vésperas de eu partir para o Brasil proferiu uma conferência na Universidade de Aix-en-Provence subordinada ao tema “Hegel et les Grecs”. Claro que tinha de assistir. A conferência foi em alemão mas havia o que hoje se pode chamar “tradução simultânea” por um professor francês – se não me engano quem traduzia era o Prof. Sagave - de modo que essas 22 folhas com a indicação manuscrita por mim: “M. Heidegger. Aix-6/20 minutos: 20 Mars 58. “Hegel et la Grèce”” correspondem às notas que eu ia tirando durante a conferência. Hegel sublinhava o enraizamento da modernidade na cultura grega, a Grécia foi, para ele, uma étape maior da história entendida como desenvolvimento de uma racionalidade imanente, era a primeira pátria do Espírito.

Foi um momento histórico esta conferência tanto mais que eu me vinha ocupando da sua obra que era, frequentemente, tema de discussões amigáveis com Pierre Aubenque. Ele vivia no nosso prédio e em Montpellier, era um amigo de todos os dias, tal como Jean Joubert. Já nessa altura Pierre era um grande estudioso de Aristóteles. Hoje é uma autoridade universitária neste campo”.

(Depoimento de E.L. prestado em 2012 ao responsável pela catalogação e inventariação do seu Acervo).


“Este livro de Pierre Aubenque, como lhe disse antes era um colega e grande amigo dos tempos de Montpellier, está associado a uma história de certo modo rocambolesca. Eu desejava traduzi-lo para português durante as férias grandes que vinha passar em Portugal e trazia-o na pasta quando em 1964 atravessei a fronteira de Vilar Formoso onde fui preso. Desconhecia por completo haver uma ordem de captura contra mim, por parte da PIDE, devido ao facto de em 1962 ter assinado o texto de um “telegrama, protesto, ou manifesto” (foi deste modo que me acusaram…) dirigido ao Presidente da República protestando contra a morte do Dias Coelho e pedindo a amnistia dos presos políticos. Como me deixaram levar a pasta para a prisão aproveitei para ler e anotar o livro, não pensei em mais nada, o tempo correu mais depressa… devido a esta leitura foi quase uma “prisão filosófica”… que tempos esses!”
(Depoimento prestado por EL, em 2011, ao responsável pela inventariação e catalogação do seu Acervo).

A primeira pág. ms. dos apontamentos tirados por Eduardo Lourenço durante a conferência de Heidegger em Aix-en-Provence

“Vocabulário de Heidegger”

ms. de um texto inacabado de Eduardo Lourenço com o título “Heidegger ou o combate real”
Num dia luminoso Eduardo inicia-se no jogo da petanca com Denise, Jean Joubert e ainda Françoise Batsh, neta de Victor Basch, herói da Resistência francesa (Annie de Faria)
Tradução de Eduardo Lourenço do poema “Il disait” de Jean Joubert