S. Pedro do Rio Seco, 1923

biografia

1923 Eduardo Lourenço de Faria nasce a 23 de Maio, em S. Pedro do Rio Seco (Almeida - Guarda), filho de Abílio de Faria e de Maria de Jesus Lourenço

1930-31 Frequenta a Escola Primária em S. Pedro do Rio Seco

1932 Parte com a família para a Guarda, onde frequenta a 3ª classe

1933 Regressa a S. Pedro de Rio Seco, concluindo o ensino primário com distinção no exame final

Eduardo Lourenço com 10 meses de idade.
Abílio de Faria e Maria de Jesus Lourenço, pais de Eduardo Lourenço.
“Eu fiquei em S. Pedro. Os primeiros dez anos da minha vida foram passados nessa aldeia, muito representativa do nosso atraso. Não havia água nem electricidade […] Sem mitificar a infância, o que, aliás, seria justo e natural, foi um tempo despreocupado, todo entregue à brincadeira, irresponsável. E depois veio a entrada na escola, onde fui um menino aplicado”
In “Retrato de um pensador errante”, texto de Luís Miguel Queirós in Publica, 13/05/2007, p.42.
Eduardo Lourenço com os irmãos Lurdes e António.

LO - Escreveu num texto que a infância é o único território onde podemos verdadeiramente ter a ilusão da felicidade.
EL - Tenho uma dupla ideia sobre a minha infância. Por um lado era um ser espontaneamente alegre, comunicativo e feliz. Essa felicidade também se paga, tem duas faces. Era o mais velho dos meus irmãos, muito filho da minha mãe, mas vivi uma infância solitária. Tive também de inventar os meus heterónimos, de descobrir maneiras de me divertir comigo mesmo, de combater a minha solidão.

In Luís Osório, 25 Portugueses (2ª edição), 1999 Lisboa, Editorial Notícias, p.161.
“Como é que um homem nascido em S. Pedro do Rio Seco pode ser outra coisa que não português?”
In Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6/12/1986.
JEF - Recordando, concretizando alguns pormenores, nasceu em que mês e em que ano?
EL - Nasci em 1923, no mês de Maio. Duas datas o escondem, o dia 23 e o dia 29. Sou como Homero, discutem-se as sete cidades em que eu nasci.
JEF - Nasceu no dia 23 e foi registado no dia 29, como era habitual na altura.
EL - Exactamente. De maneira que estive seis dias fora do tempo, e assim fiquei sempre, fora do tempo.
JEF - Falemos rapidamente da sua família.
EL - A minha família era, em parte, uma família camponesa. O meu avô era lavrador, o outro avô também seria lavrador; era uma família numerosa, vieram muito cedo para a Amadora, onde o meu avô tinha uma loja de calçado. Mas realmente essa família só eu a conheci tardiamente.
JEF - E o seu pai e a sua mãe?
EL - Os meus pais também nasceram em São Pedro do Rio Seco. Muito jovem, o meu pai veio para Lisboa, com 12 anos, e aos 17 anos alistou-se no exército e fez uma carreira militar até ao posto de capitão, já nos anos 40.
JEF - Então a sua infância foi desdobrada entre a sua terra natal e Lisboa?
EL - Não, os primeiros dez anos foram na aldeia, em São Pedro do Rio Seco, salvo um ano, o da terceira classe, que fiz na Guarda. Porque os filhos de militares deslocam-se… Os marinheiros deslocam-se, mas os militares também, e por vezes as famílias deslocam-se com eles. Nessa altura fiz a terceira classe e depois voltei e fiz a qurta classe em São Pedro. […]
JEF - Dizem que o imaginário da pessoa se constrói até aos oito anos, mais ou menos…
EL - O Péguy diz que é até aos quatro anos. Até aos quatro anos o essencial da pessoa está decidido. Não tenho luzes sobre isso, mas a infância é uma paisagem, a paisagem contou muito […] mas aquela paisagem é uma paisagem também muito singular, é uma planalto que já tem qualquer coisa de desértico que se estende praticamente por toda a Meseta e chega até ali, um planalto de vastos horizontes, não é aquela coisa de montanhas, nem vales encaixados, tem ares. A infância é uma espécie de mar que está por cima de nós, terreste.

In José Eduardo Franco et alii. Portugal Vencedor – Vidas empreendedoras em entrevista (no prelo).
S. Pedro do Rio Seco

“S. Pedro do Rio Seco é uma aldeia, do distrito da Guarda, entre outras aldeias que estão ali ao lado uma das outras, a cinco quilómetros. Não há praticamente comunicação entre elas, porque realmente não têm nada que trocar entre si. Naquele tempo eram economias de pura subsistência. A troca fazia-se apenas em dois sentidos: um para Vilar Formoso, que era a saída para o Mundo, era o caminho-de-ferro que trazia a Europa até ali. […] E depois, havia Almeida que era a sede administrativa do concelho, que ficava a nove quilómetros, mas onde só se ia também para a feira todos os meses, ou para a festa anual. Também se ia lá por ser sede administrativa: o registo civil, o tribunal e o médico […] E foi nesse mundo que eu vivi uma infância relativamente protegida e aberta também. Aquilo era o último estádio da civilização que já era uma civilização capitalista na sua franja mais rudimentar. Praticamente quase só se vivia do que se produzia na aldeia e não havia trocas. Apenas uma pequena troca que permit[ia] às pessoas comprarem qualquer coisa, vestirem-se, calçarem-se, etc. Muitos daqueles lavradores desse tempo não mandavam os filhos à escola porque não estava na perspectiva deles. Também não teriam dinheiro. Ninguém pensava mandá-los para a Guarda para fazer o Liceu, o quinto ano, e muito menos para a Universidade. […] Era um mundo muito arcaico que eu chamo Piccolo Mondo Antico, título de uma novela célebre de Antonio Fogazzaro, que é um título que eu acho admirável. Se algum dia escrevesse memórias sobre S. Pedro, teria um título parecido. Um pequeno mundo morto, ou coisa parecida”.
In O Outro Lado da Lua. A Ibéria segundo Eduardo Lourenço, edição e entrevista de Maria Manuel Baptista, 2005 Porto, Campo das Letras.
“Era o tempo em que uma aldeia era o organismo vivo, espécie de homem colectivo separado do mundo que o desconhecia e ele desconhecia, homem de dura enxada e de seus parcos frutos. Entre a fome e o sol, todos os dias eram seus. Pouco a pouco, esse vasto mundo invadiu-lhe a casa, separou-o de si mesmo convidando-o para manjares mais suculentos que nunca mais lhe saciarão a antiga fome. Envergonhou-se dos tamancos, das meias de algodão, do casaco de sorrobeco, pôs um pouco mais de açúcar no café, aprendeu a ler e a esquecer o que lia e conheceu enfim a sua milenária miséria. Em quarenta anos passou da flauta de Pan e das aventuras de Dafne e Cloé ao esplendor imaginário da televisão e seus amores piegas, seus locutores ventríloquos, vendedores de elixires divinos. Só é pena que tanta felicidade e tanto sonho a domicílio não cure fome de séculos nem faça florir o deserto. As novecentas almas do povoado recolheram à sombra ou esperam por ela. Já não habitam essas cozinhas enfumadas de trogloditas felizes. As mais audazes partiram à busca de alimento, música, cinema, escola. Estão em África, no Brasil, em França, na Alemanha e até em Espanha. Lá é o São Pedro deles. Esta minha aldeia, sem história de ouro e de sangue, navio encalhado na meseta hispânica, enterra-se docemente na sua existência, com todas as luzes apagadas e um carregamento de fantasmas cobertos de antigo suor e de mais antigas lágrimas. Quem os pudesse ressuscitar…”
In Jornal de Letras, Artes e Ideias, 8/5/1996