De todas as palavras que eu disse, nenhuma me surpreendeu tanto. O excesso de espanto tornou-a opaca. Muitos pensaram que eu tinha escolhido as parábolas para me conformar com as vestes do tempo. Escolhi-as para ir sem sombra à praia desnuda da verdade que é filha do tempo mas não tem tempo. Cada verdade é um estilhaçar da eternidade do tempo. Quando me cheguei a ver vivo no meio do mundo, recolhi no meu coração toda a luz do homem. Do meu eterno presente corria para a alvorada dos tempos e também ao encontro dos que ainda não existem numa luz unida, sem começo nem fim. A minha luz, a luz de Deus em mim, eu como luz de Deus, era uma só coisa. Por isso eu existia antes que Abraão existisse. Abraão não tinha ainda descoberto ainda que ele era a luz de Deus. Abraão é da linhagem humana um homem que vem depois de outro, o homem de uma viagem que prossegue sem conduzir o viajante ao lugar onde ele sempre esteve sem o saber. Eu soube que estava antes de Abraão e Jacob, porque só eu soube que um homem não pertence à linhagem humana mas está directamente ligado à fonte infinita. Também podia ter dito que estava antes do céu e das constelações porque em mim o seu ser se converte em vida e verdade.

A Natureza teve de esperar a minha chegada para ser Natureza. Ela não o é senão num momento em que nos tornámos homens. E isto não aconteceu num certo dia, mas sempre e nunca, porque ninguém sabe ainda o quer isso significa – ser um homem – e por consequência ninguém sabe ainda o que é a Natureza. Da Natureza só podemos ter uma visão negativa. É tudo o que somos quando nos vemos a nós mesmos como seres que não são naturais. Mas quem se atreve a conceber-se fora da Natureza? O que nos é absolutamente natural é contemplarmo-nos como irmãos da lua, do sol, da água, dos rios, das folhas, dos pássaros ou dos tigres, irmãos de leite da natureza que se distraiu um momento e que inventou olhos para se ver viver. […] Eu disse uma vez que nenhum esplendor humano pode igualar o do lírio dos campos. Mas é porque os olhava no espelho de Deus, nos meus próprios olhos. Quem, se não formos nós, pode subtrair a beleza do mundo ao seu apodrecer futuro? Como eu existia antes de Abraão e Jacob, também existia antes dos pássaros, do céu e dos lírios dos campos. Mas nunca teria podido ser quem sou se não houvesse pássaros e lírios dos campos. Eles esperavam-me, eu esperava-os. Juntos tornámo-nos, eu, um homem que associa a sua felicidade á beleza do mundo, dos pássaros e dos lírios dos campos, eles, figuras à espera de um só olhar que os acorde do sono da terra ao qual estão destinados. Ao qual tudo está destinado se eu não morrer por eles para os salvar do nada onde já estavam antes que Deus desenhasse com eles o firmamento do meu coração”.

In Público, 20/3/2000, cit. por Maria Manuela Cruzeiro/Maria Manuela Baptista Tempos de Eduardo Lourenço - Fotobiografia, 2003 Porto, Campo das Letras, pág. 131