Maria da Saudade Cortesão
(Porto, 1914-Lisboa, 2010)
A Liberdade

Eras tão só uma palavra nua
Como o fogo e intocada.
Agora que te tornaste corpo
doem-me as tuas roupas estreitas
mal talhadas, e tenho a nostalgia
daquela tua impossível nudez
de diamante e madrugada.

Março 79.

Saudade
para Eduardo Lourenço

Roma, abril 79.
Maria da Saudade Cortesão, poeta e tradutora, filha de Jaime Cortesão («Mulher toda sal e espuma/ filha e neta de altos entes/ companheira de arte-vida»), acompanha o pai no exílio e, em 1947, casa com o poeta brasileiro Murilo Mendes (1901-1975) que, num «murilograma» a descreve como «Senhora do mundo enigma,/ De labirintos Ariana,// Tu serena aparecida/ Tu poesia liberdade// Com um livro-cristal sublinhas/ O teu dançado destino» (Convergência. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970). Após a morte do marido, Saudade Cortesão deixa o grande apartamento na Via del Consolato, em Roma, para se fixar, definitivamente, em Lisboa, habitando um pequeno primeiro andar na Travessa da Palmeira, junto ao Jardim do Príncipe Real. Aí recria o ambiente cosmopolita em que sempre viveu e em que cada objecto é um testemunho de afecto e memória do convívio com grandes nomes da literatura e da pintura brasileira, italiana, francesa e portuguesa. Facilmente se integra na vida lisboeta, onde renova amizades e faz parte activa da Direcção da Sociedade Portuguesa de Autores. É desses anos o convívio com Eduardo Lourenço que a recorda, ainda hoje, como uma grande Senhora «inteligente, cultíssima, de grande elegância, e também de grande firmeza de carácter». As duas cartas que se publicam, bem como o poema inédito que Saudade Cortesão dedica a Eduardo Lourenço, são prova do diálogo e do convívio entre duas pessoas de excepção.
Lisboa 5 de 11. 85

Caro Eduardo Lourenço,

Só ontem pude obter o seu endereço (pois ninguém atendia o telefone de Lisboa) a fim de lhe enviar a fotocópia da sua conferência, aqui deixada. Confesso que tive esperanças de a ler, mas não o consegui - (a sua grafia, apesar de harmoniosa e lucidamente tranquila, na aparência tão disponível, é afinal secreta e sabe defender-se de intrusões). Fico à espera de «Ocasionais II»: não é justo que só umas dezenas de privilegiados a ela tivessem tido acesso. É bellissima.
Imagine que tinha também esquecido, em cima da mesa da sala, um livro, embrulhado. Só no dia seguinte me apercebi que eram chocolates! Você é sempre tão gentil, e eu nem sequer lhe agradeci. Por culpa da minha conhecida vaguidão fiz figura de ingrata e mal-criada para com você, e de avara em relação aos meus convidados com os quais parecia não querer compartilhar aquele delicioso veneno. Grazie infinite. E também pela sua presença, que não pude aproveitar tanto quanto desejava pois o diabo da política me roubou o prazer – raro hélas – de o ouvir falar doutras e menos transitórias e falíveis matérias.
(E a propósito de matérias falíveis: peço-lhe que esqueça as confidências de ordem literária que no começo da noite, num momento de perturbação inabitual, eu lhe fiz).
Mon cher Professeur – ma ché professore – meu muito caro e muito admirado Eduardo Lourenço, receba o abraço grato e amigo da

Saudade
Lisboa, 10 Jan.º 87.

Caro Professor e Amigo,

Ao regressar a Lisboa depois das «Festas» encontrei à minha espera um presente verdadeiramente Real: nem me julgo digna de tanto, excepto na medida em que serei – estou sendo – uma fruidora atenta e fascinada. Grazie infinite.*
Comecei a leitura armada dum lápis de traço fino para discretamente ir assinalando o que mais me frappait. Mas como o texto estava a ficar enredado numa teia de sublinhados (todo ele em itálico, por assim dizer) tive de desistir e segui lendo (ainda só os primeiros capítulos) em estado de receptividade inocente.
Não terei a impertinência de sequer tentar louvar o que li, pois me falta a autoridade. Posso só dizer que sei vou sair mais rica dessa leitura e que merecerei mais Fernando Pessoa. Estou de acordo com a necessidade de merecer a obra de arte e até de a defender da glutonaria dos seus usuários – muitos não passam disso. Há poucos anos atrás fui rever a Capela Sistina e as Stanze di Rafaello: a invasão era a do metro à hora de ponta, e o estrépito e a indiferença palradora, a dum parque de diversões duma feira de gado.
Fernando Pessoa está já erodido e desvirtuado não só pelo travestimento de muitas das leituras críticas a que o sujeitaram, como V.[ocê] muito bem nota, mas também pela banalização que o transformou – para além do mito cultural – em objecto de consumo. Teremos de pôr fim à era da reprodução e divulgação, ad infinitum e ad nauseam, da obra de arte?
Bem, agora sou eu que estou palrando. E não posso, nem quero, dispor mais do seu tempo.

Meu muito caro Eduardo Lourenço, receba os agradecimentos vivíssimos e di cuore, da sua admiradora de sempre e, mais que nunca, de agora

Saudade

* Saudade Cortesão agradece a oferta de Fernando Rei da Nossa Baviera (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986).