Luís Amaro
(Aljustrel, 1923)
A morte do poeta José Régio, a 22 de Dezembro de 1969, leva Luís Amaro a solicitar a Eduardo Lourenço um ensaio, em jeito de balanço, acerca da obra do autor de Poemas de Deus e do Diabo. O texto, intitulado «A ausência-Régio», acabará publicado no suplemento Artes e Letras do jornal Diário de Notícias e aclamado por Luís Amaro como uma «página de extraordinária compreensão […] Do mais belo, do mais fino entendimento da obra regiana». A carta de 15 de Janeiro de 1970, aqui publicada, é ilustrativa da proverbial discrição de Luís Amaro e da amizade que dedicava àqueles que admirava.
Colaborador assíduo da página literária do Diário de Notícias, dirigida por Natércia Freire, poeta de «alto merecimento», a quem, segundo o próprio, ficou «devendo atenções inesquecíveis», Amaro defende a publicação do ensaio de Eduardo Lourenço no jornal, face a eventuais escrúpulos ideológicos.
O sentido de justiça de Luís Amaro leva-o a contrapor ao «declarado ‘direitismo’» de Natércia Freire1, o facto de aí ter publicado nomes tão diversos quanto Vergílio Ferreira, Agostinho da Silva, Urbano Tavares Rodrigues, David Mourão-Ferreira, João Gaspar Simões, Domingos Monteiro, José Régio, Sophia de Mello Breyner, António Ramos Rosa, Jorge de Sena e Natália Correia.
As 129 cartas de Luís Amaro, escritas entre 1969 e 2013, são um dos núcleos mais consistentes do Acervo de Eduardo Lourenço e reflectem a actividade profissional de Luís Amaro na revista Colóquio/Letras, onde foi secretário da redacção (1971-1986), director-adjunto (1986-1989) e consultor editorial (1989-1996).

1 A asserção baseia-se, em grande medida, na amizade que unia Natércia Freire a Augusto de Castro (1883-1971), director do oficioso Diário de Notícias entre 1947 e 1971, e que convidara a poeta para dirigir o suplemento cultural do jornal.
15.1.70


Meu bom Amigo:
Recebi há pouco a sua carta, com a alegria de ouvir um interlocutor da sua categoria intelectual. Agradeço-lha portanto, e creia que a sua fina compreensão do grande Poeta me toca particularmente, e já lhe digo porquê: na obra do Régio eu vi reflectidos, desde sempre, todos os meus problemas, ainda que em mim a angústia religiosa não tenha a acuidade dramática que foi uma das suas fontes. Tudo o resto, porém (a inadaptação, a hostilidade do mundo circundante, a sensação de nele ser, tantas vezes, um intruso, o remorso de existir, a angústia do eu, etc. etc. – e não creia que dou a estes «valores» negativos uma coloração aristocratizante, ai de mim!), tudo, enfim, eu encontrei nos versos e na prosa do Régio (quantas coisas maravilhosas contém a Velha Casa tão malsinada!). Mas não só isso: quando, aqui, conheci o Poeta – tardiamente: talvez por volta de 1955 –, e ainda que ele não fosse, de modo nenhum, de uma esforçada e calculada simpatia, fiquei impressionado: tratava-se de um literato em que não havia ou não transparecia visivelmente o vício da literatura: a sua simplicidade era daquelas que não mentem. E daí que o conhecimento pessoal do Poeta lhe tivesse trazido amigos dedicadíssimos, talvez não muitos mas, repito, de uma dedicação total. A lenda de um Régio desumanamente alheio, umbilicalista em extremo, distante e frio, complicado no convívio, é absolutamente falsa. Ele era, repito, a pessoa mais simples deste mundo, e com quem se podia falar de coisas simples. Não procurava ser brilhante – todo o artifício o confrangia. Claro: desconhecer que essa simplicidade exterior encobria uma complexidade rara seria o mesmo que nunca ter lido nenhum dos seus livros… E claro ainda também que em Régio não era só o homem que nos atraía (ele aliás importava-se mais que lhe preferissem a Obra; a «conquista» humana interessava-lhe apenas num plano secundário; embora também gostasse de conviver com pessoas iletradas, num plano meramente humano – e ah, como era humano esse «criador de desumanidade»!). Note, porém, que não conheci intimamente o Régio – nunca o visitei, sequer, nas casas de Vila do Conde ou Portalegre: só o ano passado, nas férias, passei pelo seu eremitério de Portalegre, onde ele não estava, e a Vila do Conde só fui quando recebi a triste notícia de que tinha morrido.
Para mim, além de tudo, José Régio era, de facto, o nosso maior Poeta vivo – seria preciso dizê-lo? Bem sei: as suas últimas obras, a partir do Fado (mas que belo é esse livro incompreendido!), não têm o mesmo fulgor, a mesma centelha genial dos livros anteriores. Concordo com isso. Mas o que escreveu depois é também significativo – escreveria ele alguma página que não fosse significativa?!
Páro aqui: o seu ensaio, embora não abarque todos os ângulos da obra regiana, já disse tudo isto que eu estou a balbuciar… Que página de extraordinária compreensão é o seu ensaio! Do mais belo, do mais fino entendimento da obra regiana. Parabéns!
E, agora, um ponto capital: supus, ao recebê-la, que a sua carta me dissesse algo sobre o local de publicação seu preferido. Talvez eu me precipitasse ao «prometer» a Natércia Freire o seu artigo – desculpe-me… Mas, para contrabalançar o facto de aparecer eventualmente «isolado» (ou ao lado de um Forjaz Trigueiros ou Álvaro Ribeiro ou A. Quadros, típicos colaboradores do supl.[emento] da N.F.), sugerira-lhe também que convidasse um Dionísio, um Namora, um David… Não sei se ela o chegou a fazer. Entretanto, aguardo uma indicação sua (de Eduardo Lourenço). Se o desgostar a publicação no [Diário de] Notícias, não se preocupe com o facto de eu já ter falado nisso – não será mau, também, que a N.[atércia] saiba que o seu declarado «direitismo» desagrada aos escritores…, embora a N.[atércia] tenha feito algo por eles, na página referida, e tenha, como Poeta, alto merecimento. Lembro-lhe, aliás, que o G.[aspar] Simões (a quem podem acusar de tudo menos de pactuar com as direitas) é colaborador semanal, e que o nosso Jorge de Sena também lá tem colaborado bastas vezes: e o Ramos Rosa e tantos outros, incluindo este seu obscuro amigo.
O artigo do Vergílio Ferr[eir]a sairá hoje no Diário de Lisboa – mandar-lho-ei como mandei os anteriores (recebeu a melhor notícia da morte do Poeta – a do Jornal de Notícias do dia 23? Mandar-lha-ei, porque é documento precioso do ponto de biográfico, se acaso a não juntei aos jornais anteriores). Sairá, no [Diário] Popular, hoje também (o Sousa Lobo, um dos organizadores daquele supl.[emento], é um regianista fervoroso), artigo do Ruy Belo – o do Sena, pela sua extensão, só pode sair para a semana, afinal. Não, não creio que o artigo deste nosso querido amigo seja do género do que, insolitamente, escreveu sobre o Aquilino (no qual uma das verdades mais evidentes, apesar de o tom geral ser injusto, era a referência ou alusão ao oportunismo político dos admiradores que nos últimos anos de vida do mestre o incensaram, e que o mestre, com o sentido oportunista que o caracterizava, muito bem aproveitou – quando nas décadas anteriores se conservara alheio, literariamente, aos joguinhos da política…). De resto, ainda a propósito do artigo, o Sousa Lobo, num telefonema que me fez agora mesmo, confirmou-me que não era de modo algum do género do que fez enraivecer as «viúvas de A[quilino] R[ibeiro]» (expressão do Sena); no entanto… claro que não pode deixar de conter umas facadinhas críticas, sem deixar de ser, no conjunto, uma coisa admirável (concluo eu, porque não conheço o texto).
Recapitulando (e perdoe que, embalado na conversa, me tenha alongado): preciso de saber imediatamente se me autoriza a public[ação] no DN; sim senhor, farei com muito gosto a revisão das provas, embora o original já esteja, para o jornal, dactilografado; também vou fazer, já, as correcções que me indica (estava para lhe perguntar onde é que saíra o texto do Rui Feijó, mas vejo agora que foi lapso seu).
E que mais?... Que gostaria muito que o meu Caro Dr. Eduardo Lourenço escrevesse um livro… sobre José Régio!! E que publicasse um livro seu na Portugália (mas, infelizmente, isto não é um convite oficial, porque não disponho de carta branca para fazer convites destes, embora saiba que teriam, aqui, o maior gosto em publicar uma obra sua). E quanto ao seu Prefácio ao Herberto Helder?
O nosso Ramos Rosa, coitado, estava hoje desgostoso (telefonou-me, também) com a crítica do G[aspar] Simões à Construção do Corpo, e até me disse que lha ia enviar. Mas eu pedi-lhe que não guardasse rancor ao homem mais odiado da nossa República das letras e que, por essa mesma razão de odiado, eu estimo e defendo, por ver um certo heroísmo na atitude imperturbável com que ele, sabendo-se odiado, continua a dizer sinceramente o que sente e pensa, alheio às consequências e às represálias.
Perdoe-me esta estopada epistolar, e receba o mais grato abraço do seu inútil Amigo e Admirador dedicado Luís Amaro.