Manoel de Oliveira
(Porto, 1908-Porto, 2015)
O NOSSO CASO ou A GRÃ GLÓRIA DE FILMAR
sub-título de Eduardo Lourenço
in
PORTUGAL: UM RETRATRO CINEMATOGRÁFICO
Associação e Editora
Já que abordamos Régio é pertinente dizer-se que Régio nunca foi hipócrita nem na sua vida, nem na sua expressão literária.
Meu caro Eduardo Lourenço,
As realidades vividas e depois transcritas para novelas não deixam nem de ter existido, nem mesmo de continuarem a existir. E no cinema, de uma maneira ou outras, voltam a existir desde que haja A GRÃ GLÓRIA de as filmar.
Os meus filmes, quando filiados em novelas, reavivam a memória, sem que seja GRÃ ou VÃ, a reposição. E há por vezes uma certa e bem justificada preocupação em não deixar esquecer certos casos, como o CASO de tristíssima memória dos trágicos Campos de Concentração, onde os prisioneiros judeus eram obrigados a trabalhar até à exaustão para finalmente os asfixiarem nas câmaras de gaz, e depois aproveitar-lhes os cabelos, a pele, as unhas, e nem sei que mais.
Muitos documentários cinematográficos, muitos jornais e televisões deram, dão e continuarão a dar disso testemunho, para além de novelas, filmes de ficção, etc., etc.. É preciso que a humanidade não perca nunca a memória. Essa memória retida pela recolha histórica tem a desmedida importância de nos salvar do esquecimento de toda a nossa, não GRÃ nem VÃ, experiência que serve de guia na conduta da nossa condição humana. A memória é um valor inestimável e imprescindível à vida. E porquê? Creio que o Eduardo o saberá melhor do que eu.
Notei, perdoe-me a franqueza que, por vezes, se deixa atraiçoar por certos complexos-regianos, atribuindo a filmes de minha exclusiva autoria, senão mesmo aos retirados de obras de outros autores, como uma certa submissão regiana. Penso que isso terá gerado no imaginário do muito ilustre ensaísta da nossa «PEQUENA BAVIERA», que assim refere Portugal a propósito da real figura Pessoana. Era ainda ignorado ou troçado pelos intelectuais de Lisboa, quando, em 1925, Fernando Pessoa foi pela mão de Régio trazido à ribalta, como uma figura literária comparável a Camões. Sim, esse Régio que, aos olhos do Eduardo, é etiquetado como o Imperador do EU. Pois foi esse EU quem enalteceu Pessoa antes de mais ninguém – conversa acabada depois repetidamente recomeçada.
Descendo agora aos filmes baseados em textos da minha particular autoria, tenho a dizer que quando os imagino estou só comigo mesmo. Ou, se são baseados noutros autores, então faço por os copiar bem. Já alguém dizia que a verdadeira originalidade consistia em «copiar bem».
Meu Caro Eduardo, eu queria dizer-lhe mais o seguinte: sempre que imagino qualquer motivo para um filme assente na história, como no caso de NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR, principiei por roubar palavras a Vieira e a Camões, para servir de título. E sempre que envolvam elementos históricos, recorro invariavelmente a bons historiadores. Neste caso por exemplo, para formar a planificação do filme, tive dois historiadores, João Marques e Aurélio de Oliveira, e a acompanharem-me durante a rodagem outro historiador, Miguel Faria e o mestre de armas, Miguel Baena.
Porém, como permanente conselheiro histórico, recorro ao meu paciente amigo P. João Marques, doutorado em história e formado em filosofia e teologia. Ele tanto me informa, como me sugere elementos históricos convenientes às propostas que apresento, para elaborar uma planificação correcta. E é nessa base que me debruço sobre uma qualquer obra, quer de motivo histórico ou ficcional, tentando absorver o espírito da época e do seu autor. Não diferencio autores, antes diferencio as suas obras e os seus estilos, seja Régio ou qualquer outro: Vicente Sanches, Camilo, Claudel, Flaubert, Madame Lafayette, Aquilino, Herculano, Garrett, Agustina, Vieira, Camões, Becket.
Mas jamais à eterna sombra de Régio que, aliás, sempre vibrava face a qualquer um que revelasse talento e personalidade. Sempre foi um grande estimulador face à criação. E dizia que era na personalidade de cada autor que se encontrava a verdadeira originalidade.
Surpreende-me o seguinte: que o Eduardo tenha subscrito um artigo magnífico, muito compreensivo da obra de Régio, exaltando os valores regianos, datado de 1969, por ocasião da morte dele. Que, bastante mais tarde, tenha querido situar Régio, em relação à PRESENÇA como um pós-moderno. Anos depois, creio já depois da Revolução de Abril, o Eduardo mudara o seu critério, interrogando em vez de afirmar: «Régio, um pós-moderno?» Começaram, então, os seus juízos valorativos sobre Régio a progressivamente diminuírem a figura e obra do escritor. Isso teve um certo reflexo em mim, dada a minha velha estima por ele, cuja memória vinha a ser degradada. E, na medida em que o Eduardo o foi subtilmente degradando a nível político-cultural, acabou por um depreciativo EU.
E agora, caro Eduardo?
Agora, vamos ao livro, PORTUGAL: RETRATO CINEMATOGRÁFICO, da Associação e Editora, onde há O NOSSO CASO ou A GRÃ GLÓRIA DE FILMAR, onde reli as suas apreciações, de que já me não lembrava.
Rembrant, depois do seu insucesso na apresentação do quadro A RONDA NOCTURNA, explicava aos seus discípulos: «O militar tem a prova do seu sucesso nas vitórias; o comerciante, nos lucros; mas o artista, onde vai ele buscar a sua vitória?»
Vamos, então, ao Meu Caso (O NOSSO CASO, segundo propõe Eduardo). O verdadeiro ponto de partida deste caso surgiu-me quando da exposição LES IMMATERIAUX, organizada pelo filósofo francês Jean-François Lyotard e realizada em junho de 1985 no Centre Georges Pompidou. Enquanto entrava, ouvia-se uma voz dizer: «Je suis né contre ma volonté», o que logo me atirou para o contexto do futuro filme, sentindo que fazia todo o sentido começar com a peça O MEU CASO de Régio, que depois desenvolvi em mais duas fases criadas por mim, passando de um salto para a história de Job, segundo o texto bíblico. Acrescentos que fiz sem interferências de Régio. Estávamos em 1986, dezassete anos depois da morte do escritor. Como muito bem o Eduardo sabe, os amigos contestam a sinceridade de Job e tal como se narra no Livro Sagrado, Deus fala a Job inocente e coberto de chagas da lepra, que mais não são do que um reflexo de todo o desconcerto e males do mundo na figura do EU… Job. Ouvir a voz de Deus, receber Dele um sinal, fora o desejo profundo de Régio, necessidade metafísica, verdadeiro drama em pessoa, mais profundo do que o dos heterónimos de Fernando Pessoa.
Suportou Régio este silêncio até ao dia em que um ataque cardíaco abrupto o impediu de escrever o último volume da série A VELHA CASA e o último capítulo da CONFISSÃO DE UM HOMEM RELIGIOSO que ele decidira redigir só no final, depois de escritos todos os anteriores capítulos, para valer como último juízo seu. Esta fatalidade teria sido entendida por Régio como o sinal por que esperou uma vida inteira. Finalmente ele conheceria o outro lado se tal é dado conhecer.
Quanto ao «Non, ou Vã Glória de Mandar» eu sabia de ante-mão que era cousa difícil e inglória, mas que ia de acordo com o momento histórico que o País acabava de atravessar: a Revolução dos Capitães de Abril e a autonomia dada às colónias. Mais adiante: inesperados acontecimentos no campo internacional, como a implantação do socialismo em França, depois em Espanha e a seguir a queda do Muro de Berlim, numa sucessão que apontava, finalmente, para um mundo de harmonia e justiça. Mas… e aqui vêm uns aparte:
A) Classificar este filme de videoclip, será terrivelmente impróprio, porque são realizações sem nexo nem lógica. A única unidade é-lhes dada pela música e pelo canto. Não percebo como tal lhe pudesse ter ocorrido.
B) Nada é mais doloroso para um artista, seja ele de que ramo for, que a incompreensão do seu trabalho. Mais doloroso ainda seria ter ele, o realizador, de explicar-se directamente, face aos espectadores, quando o desgraçado não fez ele outra cousa, durante todo o seu trabalho de realizador, do que isso mesmo.
Caro Eduardo, não queria terminar sem acrescentar duas últimas cousas:
1 – Todos os dados históricos nos meus filmes poderão ser bem ou mal realizados, contra isso nada tenho a dizer. Mas não me acusem de erros históricos.
2 – Ao realizar os meus filmes, sempre me acompanhou o temor de ficar aquém das minhas próprias capacidades.
Seu velho amigo, admirador e muito dedicado, com um abraço de Manoel de Oliveira.
Porto, 7 de Março de 2005
Em 2004, Eduardo Lourenço publicou, no volume Portugal: Um Retrato Cinematográfico (Lisboa: Número – Arte e Cultura), dois breves capítulos dedicados à obra de Manoel de Oliveira: «A Paixão (Portuguesa) Segundo Manoel de Oliveira» (pp. 13-16) e «O Nosso Caso ou A Grã Glória de Filmar» (pp. 17-21). No segundo texto, Eduardo Lourenço faz um conjunto de afirmações que suscitarão não só uma resposta de Manoel de Oliveira, como uma espécie de polémica, na qual os méritos de José Régio («No sentido de Régio, seu santo inspirador, e no sentido comum, Manoel de Oiveira é um ‘caso’») e de Fernando Pessoa («Era ainda ignorado ou troçado pelos intelectuais de Lisboa, quando, em 1925, Fernando Pessoa foi pela mão de Régio trazido à ribalta, como uma figura literária comparável a Camões») são sopesados. Eduardo Lourenço considera «delicado e excessivo promover este criador de imagens e de histórias cada vez mais alegorizantes e barrocas a pensador. Mas o crisma de mitólogo merece-o plenamente, com o que isso possa ter de mítico e mitómano» e descreve a longa-metragem Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990) como um «espectacular videoclip ou banda-desenhada da nossa aventura de perdedores natos». Sem nunca esquecer a amizade e a admiração, esta classificação de videoclip é prontamente descrita como imprópria por Manoel de Oliveira, pois «são realizações sem nexo nem lógica. A única unidade é-lhes dada pela música e pelo canto. Não percebo como tal lhe pudesse ter ocorrido».