José Marinho
(Porto, 1904 – Lisboa, 1975)
Lx 23 a 27.V.74
Meu caro Eduardo Lourenço:
Muito grato pelo seu livro1. Já começara a lê-lo, com a lentidão com que leio agora, no exemplar de um amigo. Vou prosseguir no que fico devendo à sua generosa lembrança.
Foi com relutância, creio nunca lho ter dito, que acabei por admirar a estranha singularidade de Fernando Pessoa. Bastaria dizer-lho, sem demora de razões. Poeta da cisão extrema, ele não pode dar-me aquela sófica garantia da universidade do amor e da fé, da acção e do saber sumo, além de tudo o que kantaniamente ou noutro modo se autolimita em humano conhecer. Assim, tal como escandalizava em Faro os meus alunos de Literatura quando lhes dizia que não era do partido de Eça de Queiroz mas do Camilo, ou como escandalizo os vários simplistas da direita ou da esquerda quando lhes digo que sou do partido de Leonardo Coimbra e não do de António Sérgio, assim também digo que não sou do partido de Fernando Pessoa mas do de Teixeira de Pascoaes.
Não me iludo no entanto aí. A poesia de Pascoaes, em qualquer forma de interpretação, ou pela via da exegese, ou da hermenêutica, aparece e é singularmente difícil. Assim, aqui também, se joga em contraste de todo o todo algo que a nós ambos, e a outros lúcidos, meditativamente detém: o poeta do oculto tornado mais acessível ao exegeta e ao hermeneuta, o poeta inspirado da ingenuidade rústica, mas sábia, desafiando há longas décadas os mais dotados entre nós.
Ainda agora o experimentei na nova tentativa da versão corrigida do penúltimo capítulo do livro sobre a filosofia portuguesa contemporânea. Cautamente não o apresento assim, mas com o título Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo2. Tenho a prosápia (animado pelos amigos!) de saber muito de Antero e de Pascoaes. E são justamente, com o capítulo sobre Leonardo Coimbra, os menos límpidos e harmónicos! Vamos a ver se a sua leitura (que desejo severa e sem favor!) me consola um pouco deste acre sabor de imperfeição barroca que sempre tenho pela frente e me persegue. E como lhe interessará saber quando o meu longo estudo aparecerá, digo-lhe que será depois das férias grandes, em Outubro ou Novembro, segundo o previsto, no Porto e na Livraria Lello.
É a Tabacaria, noto, um dos seus referenciais. Foi com a Tabacaria, ao ser publicado na “Presença”, que abri meus olhos de espanto. Sondei depois toda a rara maravilha de Natal, um dos momentos cruciais da rica poética portuguesa, que em mim, há longos anos vive rítmica e significativamente. Não tem intenção o menciono. Superando, no melhor sentido dialéctico-fenomenológico a exclusividade satisfeita da interpretação literária e psicologista, V. atende o gradativo sentido do secreto e do oculto neste outro poeta da liberdade, mas não da ilusória libertação galicana ou europeística. Difícil ainda hoje (mas ah! sempre…) que estes homens tíbios, de societária valentia, compreendam Fernando Pessoa, o perigosamente lúcido, de imaginação situada – coisa rara em qualquer parte. Difícil compreenderem-no, neste país de ficção, difícil compreenderem o que finge para nos libertar da ficção, do pensar e do agir enredados na imagética obsessiva da vigília frustrada e acordado sonhar. Eu, entretanto, devo confessar, só em parte da obra o pensei e repensei. Nunca li, por exemplo, o seu infausto Fausto.
Isto, e o que disto se implica no ser de Portugal e dos portugueses, me traz agora para outras paragens. Depois da maravilhosa, súbita, transmutação nesta pátria tão difícil, rica dos contrastes que a confundem e tantas vezes acabam por desolá-la, aqui estamos na esperança confiante e na perplexidade. Eu, já se sabe, está visto, sou em Portugal e na Europa um dos filósofos mais apolíticos, com as graves e fundas razões de ser assim. E embora o homem em mim seja muito político, por seu grande amor da liberdade e sentido da justiça imperiosa, sempre, e com vantagem para o filosofar mais puro, isento, sempre minha outra natureza se sobrepõe. Assim, não sei se algo poderei fazer por este povo e esta pátria.
Sua situação espiritual é diversa, como a do Alberto3 ou do Orlando4. E não posso deixar de lhe dizer o que já antes me ocorrera, esperando não me considerar intempestivo ou intrometido.
Lembro-me, além de Heteredoxia I e II, de ter lido um panfleto seu de boa qualidade, que me passou o saudoso Bandeira de Lima, dos nossos passeios e tertúlia do Palladium, quando V., do Brasil, escrevendo num dos chamados períodos eleitorais de outrora, punha o seu não em pertinentes e reflectidas palavras.
Diga-me, se o considerar oportuno: está disposto a suprir o em que, tantos de nós, somos deficientes? Trazer uma voz de esclarecimento, mas sem as sinuosidades difíceis e problemáticas também suas e da sua exegese, a este povo carecente de ser esclarecido nas tão decisivas relações da filosofia e da política? Estou, ao lê-lo agora, de novo pensando que se o que escreve se distingue, é pelos seus dons para filosofar e bem actualizada informação. Outra coisa sua seria grato saber: há algum sinal de que o convidem para a Universidade renovada? V. é, sem dúvida, um daqueles de quem depende que ela se renove.
Não esqueço a carta de apreço e incitamento que me escreveu um dia sobre a minha colaboração de outrora no “Janeiro”5. Ela era muitas vezes sem jeito e harmonia, mas quem apreende o mais íntimo das formas, sabe perdoar suas canhestras aparências. Não só por isso o contei e conto entre os muito raros que, neste Portugal, compreendem as dificuldades de expressão da minha genealogia filosófica. E tudo assim me persuade a reiterar-lhe sempre, com toda a confiança, o sinal amigo de funda e grata estima.
Marinho
Não esqueça, peço, responda ao que pergunto. Brevemente, embora. Eu é que estou voltando a menino. De novo com a epistolografite aguda e com toda a minha capacidade de discorrer submersa por uma torrente de aforismos!
1 LOURENÇO, Eduardo, Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente. Porto: Editorial Inova, 1973.
2 MARINHO, José, Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo. Porto: Lello & Irmãos, 1976.
3 Alberto Ferreira (1920-2000).
4 Orlando Vitorino (1922-2003).
5 José Marinho colaborou no jornal portuense O Primeiro de Janeiro.
O filósofo José Marinho licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A sua obra tem sido apreciada como o «ressurgimento da especulação metafísica em Portugal». Foi discípulo de Leonardo Coimbra e conviveu com os mais importantes nomes da escola portuense: Álvaro Ribeiro, Sant’Anna Dionísio, Delfim Santos, Agostinho da Silva, Adolfo Casais Monteiro, entre outros. Com Álvaro de Ribeiro, foi um dos criadores do Grupo da Filosofia Portuguesa. Colaborou em diversas publicações, nomeadamente na influente revista literária Presença. Em 1981, o seu espólio foi doado pela família à Biblioteca Nacional de Portugal. Em 1994, a Imprensa Nacional-Casa da Moeda iniciou a publicação da edição crítica das suas Obras, preparada por Jorge Croce Rivera. Actualmente, a colecção vai no nono volume. O Acervo de Eduardo Lourenço possui seis cartas de José Marinho, datadas de 1959 a 1975.