Cruz-Filipe
(Lisboa, 1934)
Lisboa, 16 de Novembro 1975

Meu Caro Eduardo Lourenço,

A F[undação] G[ulbenkian] mandou-me ontem o seu escrito a propósito da minha pintura. Para além da comoção natural que se sente ao ouvir o eco em alguém de coisa que se fez ou que se vive, teimo em ler o seu escrito como uma meditação (muito linda) sobre alguns dos fundamentais problemas da pintura moderna. Entendendo por «pintura moderna» alguma coisa mais que o estatuto clássico do termo. Continuo convencido que a pintura ou qualquer mister dito artístico é, antes de tudo, um modo de conhecimento (uma poética de conhecimento) que pode quedar-se no seu fascínio tecnológico ou que pode aspirar a dele se libertar para poder ser diálogo não-masturbante. E que nesse tipo de diálogo não serão (e quase nunca são) os ditos peritos em artes visuais que são capazes da mais fecunda dialéctica. O problema que me complica o apreço do seu escrito é o facto de a minha pintura estar nele e, queiramos ou não, todos nós temos um pouco de Narciso. Acredite porém que consigo – tal é a beleza do seu trabalho – lê-lo já com alguma objectividade, para lhe dizer, miseramente, que é um dos mais fascinantes escritos que tenho lido em língua portuguesa (e não só) sobre pintura. Até pela concisão do que está dito.
Sempre admirei muito o seu modo de pensar (muito antes de o conhecer) mas não tinha vivido de maneira tão clara a sua capacidade de iluminar aquilo que dificilmente se diz discursivamente.
Espero apenas que a humildade com que você viu a minha pintura possa-me servir de exemplo para me consciencializar que no que você escreveu já está mais do que aquilo que eu pintei. Assim será possível irmos mais longe, porque acredito que a criação não está apenas no que fiz mas nos outros que vêem e obrigam (iluminando a leitura) a fazer mais.
Um abraço comovido do
Ricardo

P.S. Agradecia que você se aqui vier anarquizar-se um pouco me avise e, se não vier tão cedo, me reenviasse o material (slides) que lhe emprestei. Tem alguns quadros com que preferisse ilustrar o artigo? A capa será uma janela daquele com o mar. R.
Ricardo José Minotti da Cruz Filipe nasceu em Lisboa em 1934. É licenciado em Engenharia pelo Instituto Superior Técnico de Lisboa e pintor auto-didacta. Entre 1958 e 1968 foi professor-assistente no IST. Dedicou a sua vida profissional ao sector da electricidade, nomeadamente ao planeamento, à organização e à gestão de empresas. De 1976 a 1988 foi administrador da Eletricidade de Portugal. De 1971 a 1988 representou as empresas portuguesas de electricidade na Union Européenne pour la Coordination de la Production et du Transport de l’Electricité. Em Outubro de 1988, foi nomeado Presidente da Secção Especializada para Apoio às Privatizações (Ministério das Finanças). Foi agraciado com o grau de «Chevalier de l’Ordre du Mérite», pelo Governo francês.
O trabalho de Cruz-Filipe está representado nas colecções do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (nomeadamente com os quatro Mares (1983) e Bride of Stillness (1972)), Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (Como num espelho, 1969), Museu de Serralves, Sociedade Nacional de Belas-Artes, Fundação EDP e Caixa Geral de Depósitos. Foi Prémio Bolsa Malhoa (1965), Prémio Mobil (1971), Prémio AICA-Ministério da Cultura (1995) e Grande Prémio de Pintura BANIF (2003).
O texto de Eduardo Lourenço, discutido na carta em anexo («Cruz Filipe ou o Tempo Imaginário»), foi publicado originalmente na Colóquio: Revista de Artes e Letras, número 25 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1975) e posteriormente coligido no volume O Espelho Imaginário: Pintura, Anti-Pintura, Não-Pintura (Lisboa: INCM, 1981), que conheceu uma segunda edição aumentada em 1996 (Lisboa: INCM).
O Acervo de Eduardo Lourenço guarda 21 cartas de Cruz-Filipe, datadas de 1975 a 1984.