Almeida Faria
(Montemor-o-Novo, 1943)
Lisboa, 16-6-65

Caro Dr. Eduardo Lourenço,

Creio que ficou inexplicavelmente sem resposta a sua muito amável carta de Novembro (já!) do ano passado. Não sei como me acontecem estas coisas, não me recordo se hesitei escrever para não parecer adular um tão isento crítico, se terei pensado que a única maneira de agradecer a rara confiança e estímulo dos outros seria enviar-lhes o meu próximo livro. Infelizmente, este está há dois anos por sair e ignoro se será enfim este inverno que me vejo livre de mais um fantasma. Gostaria de cair no lugar-comum quase irónico de segredar-lhe que “isto”, aqui, está “tudo” cada vez pior, a começar nos editores e a terminar em qualquer outra coisa de que se lembre, a censura talvez. E, se me não desperto constantemente com uma bofetada na cara, corro o risco, como a maioria do país, de adormecer a cada instante. Nem se trata de sono ou de vigília, mas de “sonambulismo”, para usar uma referência ao mundo de Broch1. De qualquer modo, vou amontoando papéis nas gavetas, impublicáveis por uma razão ou outra, e luto contra a evidência da sua inutilidade, da sua lenta agonia de espera, do seu envelhecimento precoce, da esterilidade de todas as coisas que se escondem em guarda-fatos, ou frigoríficos, ou debaixo da cama… Eu devia falar-lhe talvez da sua carta, que só agora, passados sete meses, pela primeira vez releio. Mas decididamente não sou capaz, e deve ter sido afinal essa a razão por que não respondi logo. Ainda por cima não percebo bem a letra, talvez porque fico muito atrapalhado quando diz bem, e cheguei a pensar pedir ao Vergílio Ferreira que me decifrasse certas palavras, mas acabei por desistir. Gostaria bastante de o conhecer, coisa que me parece cada vez mais impossível, mais pelo meu exílio que pelo seu, que não sei se o é. Li recentemente a sua Heterodoxia. Não publicou mais nenhum volume? O artigo sobre a minha querida amiga Maria Agustina foi um sucesso. Um abraço do

Almeida Faria

1 Hermann Broch (1886-1951), escritor austríaco, autor de A Morte de Virgílio e da trilogia Os Sonâmbulos.
Benigno José Mira de Almeida Faria nasceu em Montemor-o-Novo, a 6 de Maio de 1943. Em Évora, foi aluno de Vergílio Ferreira. Em Lisboa, frequentou as faculdades de Direito e de Letras. Licenciou-se em Filosofia e foi professor de Estética na Universidade Nova de Lisboa. Foi escritor residente nos Estados Unidos (Iowa City) e na Alemanha (Berlim).
Colaborou em diversas publicações colectivas, nomeadamente em revistas alemãs, brasileiras, francesas, holandesas, italianas, suecas e norte-americanas. Os seus romances foram objecto de várias teses universitárias em Portugal, Itália, Holanda, Brasil e França.
Ficcionista e ensaísta, Almeida Faria obteve o Prémio Revelação de Romance da Sociedade Portuguesa de Escritores com o livro Rumor Branco (1962). Em 1965, publicou A Paixão, primeiro romance de uma «Tetralogia Lusitana» de que fazem parte Cortes (1978) – Prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Lisboa, Lusitânia (1980) – Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus, e Cavaleiro Andante (1983). Os seus livros estão traduzidos em várias línguas.
Em 1990, publicou O Conquistador. Em 1999, na colecção “Caminho de Abril”, publicou a peça A Reviravolta. Em 2000, foi laureado com o Prémio Vergílio Ferreira e a Biblioteca Municipal de Montemor-o-Novo adoptou o nome de Biblioteca Municipal Almeida Faria, em homenagem ao escritor, natural da cidade. Em 2012, lançou o livro O Murmúrio do Mundo (Tinta-da-China), um retrato da sua viagem à Índia.
A carta que aqui se transcreve, juntamente com imagens de um dossier publicado no periódico literário Letras & Letras (n.º 75, 15 de Julho de 1992), é a primeira carta datada de Almeida Faria a Eduardo Lourenço. As cartas de Almeida Faria a Eduardo Lourenço são um dos conjuntos mais extensos e significativos do Acervo de Eduardo Lourenço, sendo composto por 106 cartas, que se estendem de 1965 a 2016.