Nice, 21 de Nov. de 1969
Exmo. Senhor Director [da Comissão de Censura]
Por intermédio do Senhor Costa Barreto, director da página «Artes e Letras» do Comércio do Porto sou informado de que um artigo da minha autoria, intitulado «O SNI e os Prémio ou os Dois Silêncios Culturais» foi objecto de corte integral por parte da digna Comissão de que V.ª Ex.ª é Director. O artigo em questão – ou antes, a primeira parte dele – foi expedido para Lisboa pela Delegação dos Serviços de Censura do Porto, a 21 de Outubro do corrente ano.
Não é a primeira vez que a Comissão de Censura impede ou mutila artigos da minha autoria. Embora não tenha jamais compreendido as regras dessa Censura, visto não ser meu hábito escrever sobre matéria escandalosa ou subversiva, sempre acatei um veredicto contra o qual qualquer protesto me parecia impróprio porque inútil. Se me atrevo, desta vez, a reclamar contra uma medida que julgo injusta e sem verdadeira relação com o conteúdo real do meu artigo completo, é por estar convencido de que nada do que escrevi está em contradição com a abertura cultural e a nova perspectiva de liberdade do espírito reiteradamente afirmada pelos actuais dirigentes do meu País. Mais ainda: considero o artigo em questão um verdadeiro «teste» do novo espírito que felizmente começa a reinar no nosso País e, dada a minha posição ideológica, uma prova material da necessidade e urgência de um Diálogo intelectual adulto desejado pelo Prof. Marcello Caetano e pelo actual Presidente da União Nacional. Seria profundamente consternante ter de concluir que a instituição com as responsabilidades culturais da Censura constitui o obstáculo essencial à manifestação desse novo espírito. Não me escapa que no artigo em questão uma certa concepção do próprio organismo que V.ª Ex.ª dirige e da função cultural repressiva de que é agente são de algum modo objecto de crítica. Nesse sentido, o artigo foi bem lido e a reacção dos censores legítima, pois o que aí se pede ou insinua é justamente uma conversão – já que a sua supressão parece utópica – dos vários órgãos (entre eles a Censura) que actualmente condicionam a expressão pública da ideia em Portugal. Sem ser uma provocação – e não faço aos inteligentes censores a injúria de ter catalogado assim o meu livre artigo – é um facto que nele transparece uma exigência de liberdade que a muitos assiste ainda, mas que será, em breve, quero crê-lo, um bem comum dos portugueses, a começar pelos dignos censores. Decerto, autorizar a saída do meu artigo supõe da parte dos Serviços de V.ª Ex.ª uma certa abnegação e um implícito reconhecimento da «verdade» que no meu artigo se proclama, mas não posso crer que o reconhecimento do bom fundamento da minha crítica, aliás moderada e respeitosa, não exista entre os mesmos censores, a começar por V.ª Ex.ª como escritor que é.
Habituado à manifestação clara e directa do meu pensamento, que aprendi nas mesmas fontes que V.ª Ex.ª e exerci como um «menino da luz»1 nas páginas de um jornal onde ainda me lembro de ver figurar o seu nome, estou certo que as considerações expostas e uma releitura atenta do meu artigo integral merecerão da parte de V.ª Ex.ª uma reconsideração da medida de que foi alvo.
Aproveito a oportunidade para apresentar a V.ª Ex.ª os meus mais respeitosos cumprimentos.
Eduardo Lourenço
Professor Auxiliar na Faculdade de Letras de Nice
54, Av. de Brancolar, 06 Nice
1 I.e., aluno do Colégio Militar.
A carta de Eduardo Lourenço aqui transcrita é dirigida ao Coronel Armando Francisco Páscoa (1904-1978). Nascido em Beja, Armando Páscoa fez o curso de Infantaria na Escola Militar. Foi escritor e publicista com colaboração dispersa por vários jornais, nomeadamente no Diário de Lisboa. Militar na reserva, Armando Páscoa foi, entre 21 de Junho de 1969 e 1 de Abril de 1973, director da Comissão de Censura. A sua nomeação corresponde ao recrudescimento da presença dos militares nos serviços, em clara contradição com as expectativas criadas pela «Primavera Marcelista».
A carta aqui transcrita, bem como outros documentos com ela relacionados, encontram-se na revista Colóquio/Letras («O SNI e os prémios ou os dois silêncios culturais»), n.º 171, Maio 2009, pp. 250-70.