Eduardo Lourenço (23 de maio de 1923 - 1 de dezembro de 2020)
O Vedor

José Manuel dos Santos

Gosto de o ler naquelas horas em que não precisamos de correr para nós, porque é em nós que já estamos. Escreveu ele: "Um pensador não é um homem que pensa, mas sim um homem que faz pensar". A vasta, viva e variada obra de Eduardo Lourenço dá a esta afirmação a exactidão solene de um aforismo, a eficácia clara de um algoritmo e a visibilidade ostensiva de um letreiro luminoso, como os que são usados por artistas contemporâneos para porem no que fazem um obstáculo à indiferença.

Sobre as coisas - e sobre aquelas coisas que a arte torna suas - pensamos com ele: " O que nós perdemos, mesmo quando o lembramos, as coisas o guardam. O tempo delas, no perfume que as denuncia ou na cor que as manifesta, é a única eternidade sensível a que temos acesso. Como Proust ou Vermeer, podemos viajar sem fim no labirinto intemporal do perfume dos lilases mortos ou num amarelo que nos perturba como se fosse a única cor de Deus. Para colher esse tempo coagulado no coração ou no interstício das coisas, precisamos curiosamente, que elas, de algum modo, tenhamos cegado para elas. É assim que sem darmos por isso, mero olhar passando pelo mundo, nós imaginamos ver a realidade no momento mesmo em que a perdemos. Como reavê-la?". Com esta pergunta, não há perguntas que se façam sem ela.

A vida, admiravelmente larga, limpa e longa, de Eduardo Lourenço tem sido uma viagem pelos caminhos e pelos lugares onde os homens e as mulheres fixam, na sua face, o reflexo rápido e rude da luz que os deuses concedem apenas àqueles que, com audácia, firmeza e perigo, os fitam de frente, assim dizem que, no seu voo, a águia fita o sol.

Dos filósofos aos poetas, dos romancistas aos pintores, dos músicos aos escultores, dos cineastas aos arquitectos, dos políticos aos historiadores, todos aqueles que tiram de si mundos para acrescentarem ao mundo recebem de Eduardo Lourenço a atenção de uma inteligência mais móvel e mais subtil, mais afiada e mais afinada, do que a do florete de esgrima que, na sombra, desenha o risco da sua dança.

Os livros deste homem, a quem nada do que é humano é alheio, estranho ou indiferente, são o conta-quilómetros que marca as velocidades dessas viagens que nos levam até àquele ponto, alto e longínquo, onde, sem elas, nunca chegaríamos.

Este Fausto moderno tem uma curiosidade diabólica e o sorriso dela aparece-lhe no rosto quando fala da vida e da morte. Conversar com ele, é atravessar o hipódromo do tempo num cavalo veloz e astuto (ele aprendeu equitação no Colégio Militar), passando barreiras e executando saltos e volteios, trotes e galopes com uma perícia de alta escola. Mesmo quando Lourenço falha, falha melhor do que muitos acertam.

O autor de Pessoa Revisitado não fala apenas daquilo que faz a cultura desta extensa parte do mundo onde o sol procura o encontro com o acaso. Ele ouve as perguntas que cada uma dessas obras atirou ao mundo, tirando delas um som soletrado que, se escutado, os nossos ouvidos não mais esquecem, dispersam ou desperdiçam.

Sobre a arte da escrita e acompanhando os seus modos e movimentos, Lourenço escreveu, com letra meticulosamente minuciosa e quase indecifrável, algumas das mais densas e intensas páginas que o ventre da literatura pode gerar. Mas a distância a que a sua mão chega é imensa e o seu movimento é total como o do compasso. Há, na sua obra, um fio que percorre todos os labirintos de Dédalo e uns olhos que olham todos os céus de Ícaro que os cobrem e ameaçam.

Foi há uns anos que a publicação de Tempo da Música, Música do Tempo revelou, dele, segredos que poucos pressentiam. Recentemente saiu o livro Da Pintura que prolonga um outro, publicado nos anos 80: O Espelho Imaginário. Nesta obra que agora se editou, reúnem-se textos e fragmentos deles, alguns éditos e outros inéditos, uns descobertos e outros revisitados, completos ou inacabados. E há um pensamento que corre como um rio subterrâneo sob o chão de cada texto. Lourenço vê e pensa o que vê numa escrita com que nos entrega a sua visão e o pensamento dela.

Como ele, há poucos e em Portugal nenhum. A sua arte é a das palavras que não desistem uma das outras e nessa persistência tornam-se o íman do mundo. É por isso que não sabem fazer mais do que encontrar o lugar onde o tesouro está escondido. Lourenço é o vedor (de "ver") que sonda, sob o chão pisado e repisado, as fontes de água incessante.

Ele afirma: " Um pensador não é um homem que pensa, mas sim um homem que faz pensar. Pensar todos os homens pensam, mas nem todos fazem pensar. Um criador não é um homem que sonha, mas um homem que faz sonhar uma inumerável sucessão de homens e de tempos". Para sabermos isso, basta-nos ler este livro.

in Epicur, Outono de 2017, p.22